Sem Ponte para o FuturoO jornal "Público" publicou um interessante artigo (Local, ed. 26/Jun/2003), da autoria de Pedro Garcias, representativo do contexto socio-político de Trás-os-Montes.
Segundo o autor da notícia, a Junta de Freguesia do Amieiro, que, no passado dia 27 de Dezembro, viu ruir a ponte que lhe quebrava o isolamento pela ligação à margem esquerda do rio Tua e à estação ferroviária de Santa Luzia, interpôs "uma queixa-crime contra eventuais responsáveis" pelo colapso daquela estrutura no Tribunal de Alijó. Fê-lo a dois dias do final do prazo e forçada pela abdicação do Ministério Público que, embora conhecedor da situação que configurava um crime público, nada fez para apurar responsabilidades.
Diz-nos Pedro Garcias que a ponte tinha custado trinta mil contos, dos quais vinte e quatro mil tinham sido doados pelo benemérito da terra, já falecido, sr. José Rocha, e os restantes seis mil contos representaram a contribuição da C.M. de Alijó. E que a ponte desaparecida por força das cheias de inverno, que a ponte-açude de Mirandela não contribuiu para disciplinar, como decorre da sua natureza de intervenção regularizadora na natureza, substituiu, temporariamente (apenas por dezoito anos), a barca, quando o ímpeto do rio o permitia e o "teleférico", gaiola suspensa por arames, cuja autorização de funcionamento deveria, só por si, imputar responsabilidades aos agentes.
Resta a referência aos acusados na queixa-crime corajosamente interposta pela Junta de Freguesia do Amieiro: Estado português, o Instituto de Estradas de Portugal, a Câmara Municipal de Alijó, os responsáveis operacionais da ponte-açude de Mirandela, o construtor António Carneiro e a empresa Metalomecânica de Amarante. À lista não acrescentou, a Junta de Freguesia do Amieiro, o Ministério Público, mas este não deixou de ser, convenientemente, censurado na sua omissão.
À laia de La Fontaine, quero extrair para o meu breviário analítico as seguintes conclusões. A primeira, reveste a forma de um vaticínio: as bravas e inconformadas gentes do Amieiro só voltarão a dobrar as trapaças do Tua-Adamastor quando gerarem um novo José Maria Teixeira da Rocha, cujo apelido já dá garantias de solidez e obstinação suficientes para tão grande empresa. A segunda suporta a minha homenagem à coragem, sentido de serviço, insubmissão ao destino e independência revelados pelos eleitos do Amieiro. Os residentes e os amieirenses da diáspora, que os haverá, devem apreciar e seguir, mobilizados, esta liderança. O Ministério Publico, ao não proceder ao inquérito nem deduzir acusação que correria por conta do erário público, o que denota, pela via enviesada do economicismo, uma parcimoniosa e zelosa administração, trouxe para as populações em causa um encargo desnecessário no acesso à justiça. Este, garantido constitucionalmente, tropeça numa praxis de obstáculos "naturais" só comparáveis às intransponíveis arribas do vale do Tua, tão ingratas para os amieirenses. Outra seria, quiçá, a atitude do MP se a pressao mediática atingisse o clímax de Entre-os-Rios... A terceira resume-se ao registo de mais uma prova, da miríade delas que se pode encontrar na análise das relações entre câmaras municipais e respectivas juntas de freguesia, da generosidade, solidariedade e com+paixão da autoridade municipal em causa. Não sei quantos eleitores habitarão a localidade, mas não terá ela, com certeza, peso eleitoral decisivo no concelho. A contribuição dada em 1985, aquando da edificação da frágil solução da travessia e, sobretudo, o comportamento pós 27 de Dezembro de 2002 provam que a aposta nos municípios para a resolução de problemas locais, por razões de proximidade, vale o que vale e, em certas ocasiões, muito pouco ou nada.
Outra extrapolação a partir deste caso diz respeito ao grau de satisfação que as gentes transmontanas podem, legitimamente, manifestar nas autoridades que lhes colocam ao serviço, sejam elas judiciárias, administrativas ou, noutro âmbito, de saúde, escolares, etc. Como qualquer região periférica (os Açores são um caso flagrante de recurso para quem quer iniciar carreira na função pública), só temos direito a novel licenciados sem experiência, a quadros sem curriculum, viciados e domesticados pela militância partidária, a autarcas servos de estratégias e cálculo políticos, a quem se pressente o fastio por causas "menores" e a ambição posta ao serviço da carreira, que se segue ao tirocínio regional, feita à volta da farta mesa da
res publica, a imigrantes que, embora qualificados, não terão perfil totalmente compatível com as nossas necessidades, a responsáveis cuja permanência na região é vista pelos próprios como um injusto degredo de que se livrarão à primeira oportunidade surgida no litoral.
A ser provada a responsabilidade no colapso da parte da gestão operacional da ponte-açude de Mirandela, ela é reveladora de duas realidades sinistras: a gestão de determinados equipamentos como estes ou outros, estradas, vias férreas, em que o controlo incompetente pode pôr em risco as populações, não pode ser negligenciável; a falta de coordenação de operações entre concelhos vizinhos aqui patente demonstra os resultados das políticas de fronteiras estanques ou da discontinuidade administrativa sobre a qualidade de vida dos cidadãos que não têm culpa nenhuma, nem merecem ser vítimas da régua e esquadro da divisão territorial. Se a montante estivesse Espanha...
Em sexto lugar, regozijo-me pela ausência de tragédia com o seu rol de vítimas de toda a natureza. Como portugueses, temos, sempre, esta facilidade de vislumbrar sorte na desgraça.
O facto de a comunicação social não se demitir, nem esquecer o seu papel reformador da consciência cívica é motivo do meu reconhecimento.
Por último, a conclusão que mais prazer me daria retirar, embora esta dependa da penosa tramitação processual e dos desenvolvimentos subsequentes, é a de que há recompensa para a perseverança, para a força da razão e para a vítima de todas as negligências e omissões, a isolada, mas não esquecida, população do Amieiro.