TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

31 agosto 2003

Aperfeicoamento da democracia

Aperfeiçoamento da democracia

Do Outro, eu extraio esta proposição:
"A ideia de pôr em causa o sufrágio universal é o maior retrocesso que consigo imaginar na ideia de democracia. Não é necessário citar a frase de Churchill que se tornou cliché para entender que todas as alternativas são aterradoras. O tema foi lançado no cristovao-de-moura a reboque do reaccionarismo (a expressão não é minha) do avô Joaquim de PVG e já teve os contributos do Carimbo e do Alfacinha. PVG, que iniciou a conversa, acha-a "uma grande chatice". Eu digo: uma grande chatice seria o regresso à ideia de despotismo esclarecido que PVG propõe. A democracia já tem as suas perversões naturais suficientes para tornar desnecessário que, em nome do seu aperfeiçoamento, a pervertamos sem remédio. Já agora, quem seria o juiz da capacidade de votar?"
A causa dos aperfeiçoamentos projectados para a democracia, a que alude, criticamente, o Outro, eu, radica nas "(...) perversões naturais" que se toleram, irresponsável, displicente e complacentemente em democracia.
Os problemas que venho abordando, da morte anunciada do mundo rural e a resposta desadequada do poder autárquico, que se propagam por dois terços do país como doença contagiosa do sistema democrático, alimentada, parasitaria e insidiosamente, dos magros recursos nacionais e comunitários, iludidos e generosos, comentam-se em surdina como se se tratasse da fatalidade de uma maldição a que não se pode escapar.
Nem a ameaça, latente, de colapso que impende sobre a parte saudável que resta provoca qualquer debate com carácter de urgência. Ninguém está disponível para afrontar este cancro predador furtivo; nem mesmo este território livre da blogosfera dá sinais de estar interessado em constituir-se fórum de pressão esclarecido, apesar das cintilantes e influentes estrelas do firmamento mediático e político que o habitam. E assim segue, impotente, a democracia, manietada pelas suas contradições, das quais as institucionais são as mais paralisantes. Compreendo muito bem o desespero de quem, tendo razão, provada à saciedade pela realidade, tem de vencer a dura e ingrata prova do convencimento maioritário, sempre sensível à manipulação dos cantares de sereia demagógicos numa colossal encenação de ineficácia, rodeando os mesmos problemas em circular movimento perpétuo. E são, normalmente, os mais encarniçados adeptos incondicionais da democracia os que se queixam da ineficiência da acção política e da sua incapacidade de solucionar os problemas recorrentes da sociedade e não tanto aqueles, apodados de inimigos deste popular e, ainda assim, virtuoso regime, que já lhe anteciparam os limites e se retratam no cepticismo das suas convicções.
Viva a democracia como proposta adequada à gestão da soberania, delegada por um povo maior e esclarecido!

Pedofilia

Pedofilia

Forçados, por imperativo consolidado do estado de direito, que teceu a espessa cortina da presunção da inocência e da dignidade moral e ética dos arguidos, a determo-nos na antecâmara do juízo até que a prova produza, ou não, o seu efeito, nada nos poderá prender, por agora, ao caso concreto.
Vedado que está o caminho ao julgamento e condenação sumários, nem por isso escasseiam motivos de reflexão. Quando os supostos agressores são padres ou antigos seminaristas, como acontece no caso recente do Centro Social e Paroquial de Vila Marim (Vila Real), assalta-me uma perturbadora pergunta: quantos deles foram, também, vítimas silentes e solitárias, num tempo despido de conceitos, novíssimos e prestigiantes para a actual ordem civilizacional, como o de emergência infantil e o da censura social, tantas vezes estridente, arrogante, apressada, manipulada e, por todos estes adjectivos, nem sempre justa, mas sempre necessária, útil, conformadora de uma consciência social defensora da dignidade da pessoa? Quantos destes indiciados foram objecto involuntário de uma pedagogia e uma moral de formatação pessoal que nunca acertou o passo doutrinário com a real e intemporal condição humana, na dimensão da sua sublime pulsão sexual umas vezes negada, outras reprimida, sempre desvalorizada e reduzida à sua condição animal? Quantos mais devastados e apavorados actores ocultos desta ignomínia, violentados por um sistema confessional, porventura bem intencionado, mas permeável e propício a desvios desta natureza, viverão, por aí, a angústia dilacerante que alterna entre a denúncia iminente que não se deseja e a exigência de um gesto purificador imposta pela consciência atormentada?
Receio, ainda, que, tal como no contexto americano, seja neste particular caldo de cultura que predominem as manifestações pedófilas, pelo que seria prudente e profilática uma vontade de diálogo, sem ressentimentos nem recriminações prévios, postos de lado eventuais obstáculos formais de natureza jurídico-canónica, entre Estado e Igreja, com o objectivo de atingir mútua cooperação na condução da acção social.
Já o problema de fundo, que parte da ideia simultaneamente pluridimensional e unitária da pessoa como fundamento de uma determinada construção do homem religioso, terá de aguardar longa caminhada de substituição de paradigmas marcados pela intransigência e fundamentalismo dos velhos dogmas.

26 agosto 2003

Afericoes 1

Aferições

Extraio de A Espuma dos Dias impressões fixadas no "diário de bordo" de umas férias transmontanas:
"Em Vidago sonhei com jorros de água erectos, jactos cálidos, nudez, remineralização, poçães anti-oxidantes feitas de água, embriaguez translúcida.
Em Vidago jantei e pedi água. Julgando que era clara e translúcida a minha sede de água de Trás-os-Montes. Venderam-me Aquarel, a água da Nestlé. Perguntei porquê. Responderam-me que precisavam de me vender água da Nestlé. Que também a Campilho é Nestlé. Que também a Nestlé é um cliente. Enfim, que outros interesses se erguiam. Disse que näo o censurava, ao senhor do restaurante O Resineiro. Não disse a verdade. Censuro-o.
Levei comigo a garrafa de litro e meio de Nestlé. Está na mala do carro. Para verter dentro do depósito do limpa-vidros do carro do meu amor.
Em Montalegre, o meu amor pediu umas tapas. Serviram-lhe presunto serrano com queijo de plástico.
"

Ao Aviz de Trás-os-Montes "roubo" transcrição da sua coluna do leitor:
"Também acho que a província, ou o Portugal profundo, não é o mundo das maravilhas de que se fala de vez em quando, pelo contrário, é o lugar onde se reúnem todos os defeitos dos portugueses, com especial importância quando vivem muito próximos e são muito conhecidos um dos outros. […] Um dos problemas crónicos é a ignorância em muitos sectores, desde os opinion makers até ao cidadão comum que não lê nem se interessa muito por aquilo que desconhece."

Pela Tempestade Cerebral fiquei a conhecer o pensamento e a pesquisa do Jaquinzinhos:
"O populismo de todos os partidos que apadrinham cada terrinha com aspirações a urbe maior, temperado com a promessa de novos cargos autárquicos e regado com muitos pequenos orgulhos locais faz destas. Um país cada vez mais retalhado."
"Cada vez será maior o montante dos impostos transferidos para as autarquias e que serão cada vez mais desperdiçados em novas e desnecessárias estruturas."
"Com menos de uma dezena de milhar de habitantes, temos (...), só no continente (...), 90 concelhinhos. 90 senhores presidentes, 400 senhores vereadores, 500 secretárias, centenas de directores de serviços, 90 serviços de contabilidade autárquica, 90 serviços de fiscalização, 90 planeamentos, 90 departamentos disto, 90 departamentos daquilo, centenas de fiscais municipais, centenas de regulamentos, de posturas, de editais, 90 serviços municipalizados, 90 abastecimentos de águas e de saneamento, um sem fim de organizaçõezinhas inviáveis. O desperdício levado ao grau mais alto."

As experiências alheias, mormente as daqueles que nos dissecam a partir da sua condição livre de estrangeiros, calibram-nos o pensamento analítico e especulativo. A partir destas, concluo que não carreguei demasiado nas tintas.
Impossível menosprezar a lucidez destes testemunhos. Na blogosfera faz-se muito pelo amanhã de Portugal, mas a voz autorizada da imprensa institucional faria ainda mais se deixasse de nos tratar na coluna das curiosidades e se associasse na amplificação destas vozes.

Nota:
Ultimamente, em plena época de férias, tenho recebido solicitações para aconselhamento turístico na preparação de itinerários por terras transmontanas. Peço desculpa pelo silêncio inicial que cultivo. É metodológico e estratégico. Ao jeito da recusa em antecipar a narrativa cinematográfica a quem no-la solicita na véspera da sessão programada; ao estilo da desnecessária e inútil descrição da qualidade estética e do íntimo deleite requerida por quem nos sucede na visita a um museu.
Num segundo momento, depois de cada qual imprimir na sua alma as imagens da conquista, segue uma proposta, que já não condiciona a experiência inicial (ou iniciática?), e possibilita posteriores aferições.

25 agosto 2003

Agradecimentos

Agradecimentos

Na sua missão de contribuir para a "formatação" da sociedade através da utilização de critérios de racionalidade económica, o Tempestade Cerebral resolveu investir o seu tempo e amabilidade na análise e divulgação das minhas reflexões aqui vertidas.
Atendendo à vocação que caracteriza a sua postura na blogosfera, não posso deixar de me manifestar lisonjeado e agradecido. Fico à espera da prometida contribuição para o tema da reforma administrativa e atento a novas cumplicidades. Todos somos poucos para mudar Portugal.

24 agosto 2003

Agradecimentos 1

Agradecimentos

Embora tratando-se de uma reacção tardia, não indiciando, todavia, qualquer outro juízo ou apreciação para além da mera circunstância de viver o frenesim de férias iminentes, aqui se dá conta da recepção orgulhosa do "bloscar" para o «Melhor Estudo» da semana, pelas nossas postas (é a primeira vez que emprego este estranho aportuguesamento, já que, para estas bandas, posta sem mais explicação é naco de carne) "Contribuição para uma Reforma Administrativa - Partes I e II", muito gentilmente atribuído pelo Mata-Mouros. Nada temos para agradecer e retribuir além da garantida e assídua ligação ao Mata-Mouros.

20 agosto 2003

Empresas Municipalizadas

Empresas Municipalizadas

Retiro da imprensa diária, fonte de inspiração e documentação frequente para as minhas reflexões, notícia acerca de duas sociedades anónimas que designo por "municipalizadas" em virtude de a posição de controlo pertencer aos municípios em que estão sediadas.
A "Quintas de Melgaço, Agricultura e Turismo, SA", tecnicamente falida e em que a câmara local detém 68% do capital, estando o restante disperso por mais de quatro centenas de pequenos produtores, vive momentos conturbados (casa onde não há pão...), de conflito entre o accionista maioritário e os minoritários. Estes, tementes ao estipulado pelo Código das Sociedades Comerciais no que toca a capitais próprios muito inferiores ao capital social, substituíram-se à contrariada administração "camarária" e convocaram uma assembleia geral com a finalidade de sanear, financeiramente, a empresa por via da aprovação de uma operação "harmónio", de redução para absorção de prejuízos, seguida de aumento do capital social, exigindo do accionista de referência entrada proporcional ao capital detido. O sócio maioritário, escudando-se no bloqueio ao endividamento vivido (abençoado bloqueio! Os modos enlutados e revoltados empregues por estes regedores incompreendidos - coitados! - para diabolizar a proibição do recurso ao crédito e quem tomou tal medida de disciplina financeira e, a partir desta realidade, a consequente justificação para se eximirem, automaticamente, a responsabilidades pelos depauperados capitais próprios, dão a sua real dimensão de gestores, para quem o recurso à dívida é a normal solução para qualquer "buraco", certos e seguros - até quando? - de que o destino do município não será idêntico ao das tais empresas municipalizadas), não se compromete com a parte do aumento a subscrever. Para além disto, o representante dos pequenos produtores e accionistas confronta a outra parte com acusações da seguinte gravidade: os dois administradores nomeados pela autarquia "não se empenham" e o conselho de administração é liderado por um presidente, vice-presidente da câmara, ausente; requerem a retirada de alguns dos nove trabalhadores "que estão a mais" (alguém me poderá explicar a verdadeira extensão da realidade aqui implícita?), parte de uma medida de gestão mais vasta que visa "acabar com hábitos internos que aumentam despesas correntes".
Entretanto, a assembleia geral já se realizou e deliberou promover a operação de alteração do capital prevista. Esta decisão foi tomada com os votos da autarquia, enquanto os sócios minoritários presentes abandonavam a sala, queixando-se da falta de diálogo, desconhecendo o valor da tomada de capital a assumir pela câmara e reclamando um milhão de euros de pagamentos atrasados aos sócios viticultores.
Os trabalhadores do metro de superfície de Mirandela estão de greve, protestando contra as condições de trabalho.
Esta sociedade anónima, detida pela câmara mirandelense, nasceu da ambição pessoal do malogrado Presidente José Gama que, à força de se fazer notar no meio político nacional, nem que fora à custa de decisões estapafúrdias como esta, contratualizou com a CP esta farsa de serviço público a troco de leonina garantia de capacidade construtiva dos dois lados da via férrea. Este projecto foi, desde o início da sua exploração comercial, um rotundo fracasso. Sem passageiros e com um déficit mensal permanente, a Metropolitano de Superfície negociou, há cerca de um ano, com a empresa pública de caminhos de ferro, a extensão da exploração até ao Tua, num percurso que a CP ameaçara, diversas vezes, abandonar por falta de viabilidade económica.
Em resposta às reclamações dos trabalhadores, o presidente da sociedade do metropolitano, que acumula com a presidência da câmara, transporta para momento posterior a solução do problema, numa altura em que a sociedade ceda lugar a outra que acolherá, no seu capital, as autarquias servidas por aquele ramal ferroviário: Carrazeda de Ansiães, Vila Flor e Alijó. Obviamente que o que está em causa é a partilha do prejuízo.
Eis dois exemplos que reforçam a minha convicção que se trata de grave erro a aventura empresarial das autarquias. Conceder às câmaras municipais a capacidade de intervirem no mundo empresarial, através da criação e/ou exploração de sociedades comerciais, é, antes de mais, legitimar uma promiscuidade tão censurável e contranatura como permitir aos tribunais a gestão de empresas de comunicação social (que jeito daria no momento actual!) ou condescender com a exploração, pelas polícias, do negócio da segurança privada. Em todos estes casos, os objectos sociais patentes no exercício daquelas actividades comerciais corrompem os fins para que foram criadas as instituições públicas referidas, desvirtuam o mercado, viciando as regras da justa concorrência e, regra geral, acabam em desastre económico, com o seu rol de vítimas e o desperdício de dinheiros públicos, por incompatibilidade de matrizes fundacionais e por incompetência dos agentes (comissários políticos) envolvidos.
Por vezes, estas aventuras traduzem a concretização um impulso mimético de ascensão à categoria de empresário, nem que seja arriscando dinheiro alheio. Frequentemente, trata-se de um sórdido e paternalista desejo de controlo ou tutela de toda e qualquer expressão da sociedade civil, sob a capa de um premente imperativo assistencialista, ao serviço de uma lógica de sustentação no poder pela exploração de contrapartidas a partir de uma teia de dependências. E assim se explica o inusitado e paradoxal apego por esta dimensão, até há pouco tempo exclusivamente privatística, da actividade económica - sociedades comerciais em geral e anónimas desportivas - que decorre em simultâneo com a cessão de competências próprias - e exclusivas até há poucos anos - a sociedades privadas, nos domínios da recolha e gestão de resíduos sólidos urbanos e do abastecimento de água.

Sergio Vieira de Melo

Sérgio Vieira de Melo

Lágrimas e raiva. Flores e esperança.

17 agosto 2003

Portugal entao

Portugal, então

O Aviz deu-me notícia dos muitos que engrossamos as fileiras dos descontentes e desencantados. Sabe bem, a quem se habituou a verificar que as suas causas não despertam mais que minúsculas minorias, saber que outros, como nós, se inquietam, não abdicam e não se conformam.
Pelo espelho do Aviz conheci Cristóvão de Moura, o próprio, homenageado, e o seu seguidor. Curvo-me perante a lúcida coragem da análise.
Embora cáustico e descrente, ainda pretendo evitar um radical cepticismo. E não tanto por acreditar numa redenção tardia, mas, antes de tudo, por confiar nas minhas verdades e numa renovação geracional atípica, que, de tão improvável, ainda pode ocorrer. Portugal, por que não?

15 agosto 2003

A privatizacao da DRATM

A "privatização" da DRATM

Em um dos meus últimos posts, quando analisava a mitologia em que se enreda e compraz a agricultura transmontana e os seus primores, bem como o papel de liderança deste processo assacável à Direcção Regional de Agricultura de Trás-os-Montes (DRATM), propus uma alteração estatutária (...), mantendo a natureza pública, mas adquirindo características societárias de direito privado, um pouco à imagem da intervenção do Ministério da Saúde no sector dos hospitais. E, a seguir, sustentei que, em prejuízo da excedentária capacidade técnica, aquele organismo fosse dotado de competências nas áreas do marketing e comercial.
Ao expor, assim, as ideias que desde há muito me pairam, consistentemente, no espírito, estava convencido da sua relevância para o sector primário nordestino, mas, igualmente, do seu estatuto de lucubrações peregrinas, incapazes de despertar a mínima adesão e apoio num meio tão monolítico, na dupla perspectiva da "dureza" e do unanimismo, como é o establishment agrícola e do desenvolvimento rural. A alteração proposta, suponho eu, levantaria tais oposições da parte deste que, mesmo que alguém, algum dia, a tentasse implementar, rapidamente desistiria de promover as mudanças legislativas e orgânicas necessárias à sua operacionalização.
Entretanto, da leitura da sua última crónica semanal, que recebeu o esclarecedor título "A 'privatização' da administração pública", resultado da colaboração que mantém com o jornal Público, obtenho, de Vital Moreira, a informação relativa à disponibilização para discussão pública do regime geral dos institutos públicos, no âmbito mais vasto da reforma da administração pública de que se tinham publicitado mais os aspectos relacionados com o estatuto do pessoal dirigente (por força da acção dos sindicatos).
Segundo aquele autor, que estranha e censura a falta de atenção e discussão da referenciada lei-quadro, a racionalização ordenadora dos institutos públicos, a introduzir por via da aprovação desta peça legislativa, atingirá um "enorme alcance político" que justificaria o título da sua crónica.
Procurando, ainda, acompanhar a argumentação de Vital Moreira, a cessão da gestão de estabelecimentos públicos, a concessão de serviços públicos e a delegação de serviços públicos admitidas trazem como novidade que "não se trata, agora, de serviços públicos 'económicos' (...), mas sim de serviços públicos não mercantis, integrados no chamado 'sector público administrativo' (SPA)", aproveitando para generalizar a solução pioneira testada na gestão do Hospital Amadora-Sintra "em todo o tipo de estabelecimentos públicos (museus, escolas, etc.) e a todo o tipo de serviços públicos".
Carreando para o caso concreto da sugestão referida de início os dados relevantes introduzidos por esta parcela da reforma da administração pública, considero esta evolução muito encorajadora. A estratégica e sub-reptícia aprovação de um quadro geral de viabilização da privatização, posterior e em concreto, de sectores arcaicos, anacrónicos e resistentes a qualquer mudança, dissipa as minhas dúvidas e cepticismo relativos à exequibilidade técnico-jurídica da proposta que deixei.
É destes rasgos inovadores e audazes que carecemos. Com que autoridade e honestidade intelectual alguém se oporá à busca de novos caminhos e soluções, alternativos a sistemas que tiveram o seu tempo e já provaram a sua ineficácia?

14 agosto 2003

uma Reforma Administrativa 2

Contribuição para uma Reforma Administrativa - II Parte

Mesmo antes de abordar a orientação a seguir nesta segunda e última parte deste singelo, mas empenhado contributo para uma reforma administrativa, sinalizada como a prioridade inadiável e imprescindível para ganhar um futuro para Trás-os-Montes, não posso deixar de comentar as últimas notícias relativas ao início da turbulência introduzida pelo novel enquadramento legal que instituiu as áreas metropolitanas e as comunidades urbanas e intermunicipais. Como a procissão ainda não deixou o adro, só os mais atentos e comprometidos com o futuro de todos nós assinalaram os confrontos e as pressões que já se registam entre autarcas das Beiras, divididos entre os que contrapõem às várias comunidades intermunicipais, sugeridas por alguns (Fundão), uma única comunidade urbana de meio milhão de habitantes, resultado da soma dos agregados populacionais de todos os concelhos da Grande Beira Interior. A guerra está marcada para Setembro, altura em que o grupo de trabalho, nomeado para o efeito, apresentará estudos fundamentados, decisivos ou não, logo se verá, para validar uma decisão. Por essa altura, ocorrerá, igualmente, o balanço da "silly fire season", esta mais decisiva para avaliarmos a tendência de vitória.
Tal como escrevi na primeira parte, este quadro não traz nada de novo ou de bom; trata-se, tão somente, de elevar a outro patamar o palco das guerrilhas e rivalidades dos galos costumeiros, lá onde se consomem, desgraçadamente, recursos que em nada servem o bem-estar e desenvolvimento das populações.
Batalhas da mesma guerra de protagonismos regionais e de contabilidade política e financeira (posicionamento para assalto a fundos comunitários) decorrem entre municípios do vale do Lima, com vista à constituição de uma Comurb em antecipação e oposição a estratégias concorrentes do clube dos 24 - a totalidade dos concelhos da região minhota - ou dos vizinhos do vale do Minho.
Ainda neste âmbito, tem vindo a ser, insistentemente, referida a divisão de opiniões que dilacera população e edilidade de Mondim de Basto, relativamente à necessidade de optar, a curto prazo, entre a adesão (desejada pelo Presidente da Câmara) à futura Área Metropolitana do Minho ou integrar uma das eventuais Comurbs ou comunidades intermunicipais que se desenhem em Trás-os-Montes. No primeiro caso, tratar-se-ia da primeira deserção de um município transmontano da sua "pátria".
A questão a dirimir, aqui e agora, prende-se com a incógnita perturbadora que nos condiciona o exercício especulativo de predição do número de outros abandonos "oportunistas" que se verificarão quando estiverem em marcha as variadas propostas de acasalamento possíveis. Já no contexto nacional, se não quiser, para já, questionar a constitucionalidade dos diplomas em apreço, como o fez certa doutrina, é pacífico e seguro arriscar que este quadro legislativo evidenciará tais lutas e divisões encarniçadas, obscenas, exibicionismos e vaidades, traições, rivalidades e interesses titulados camuflados de defesa, intransigente, do bem-comum, tão indesejáveis como inoportunas e surpreendentes quando vistas à luz do recente e abortado processo de regionalização. Enfim, um terramoto!

O Contexto
Vindos da bruma dos tempos onde nasceram como conselhos (comunidades) de homens livres, que se autodeterminam por esta forma de organização política, os concelhos fizeram um percurso no sentido da perda gradual da independência inicial por força de se deixarem, progressivamente, enquadrar pela tutela régia.
Hoje em dia, como consequência da revolução de Abril, trilham, novamente, caminhos autárquicos, fundados na delegação, por parte do poder central, de cada vez mais competências e meios para as exercer, num processo progressivo de sofisticação administrativa e financeira cega, por não tomar em conta a evolução demográfica desequilibrada que impõe, de facto, uma hierarquia de concelhos cada dia mais nítida: os do litoral e os do interior; os de primeira e os de segunda ou terceira categoria, um pouco à laia da classificação de Herculano.
Nos concelhos (municípios) imperfeitos do interior, a crescente complexidade e exigência trazida pela descentralização aludida trouxe um grau de responsabilização completamente desajustado e desproporcionado em relação ao perfil-tipo do autarca rural, com o seu déficit formativo ao nível das competências de gestão e planeamento estratégico, não compensado por capacidades subsidiárias que lhe pudessem advir em socorro das equipas que constitui e lidera e ocorre, paralelamente, com um despovoamento sem precedentes, motivado pela brutal quebra de natalidade, consequência das emigrações, interna e externa, que ameaçam coroar reis sem súbditos.
Neste recente regresso à esteira autonómica, embora mitigada, o concelho impôs, paulatina e silenciosamente, uma ditadura de duplo sentido. Desde logo sobre as juntas de freguesia, cuja existência não vai além da mera formalidade orgânica com reconhecimento constitucional, vazia de qualquer relevância prática; ditadura, ainda, porque os concelhos estiolam sob a influência do pensamento único presidencial e da respectiva equipa autárquica, apesar de nesta caberem oposicionistas, que, à medida que os mandatos evoluem, acabam "domesticados" e aculturados. Por sua vez, esta hegemonia ideológica impõe-se, opressiva, àquela casta dirigente sob a forma de um determinismo conceptual e uma praxis postos ao serviço do valores supremos da sobrevivência política e da perpetuação no poder. É por isto que a acção política é ritmada pelo calendário eleitoral, vive num contexto de curto prazo, navega à vista, no intuito de garantir a prerrogativa da alteração de rota, segundo uma análise empírica dos feedbacks de conjuntura, com vista à maximização do benefício. Daqui resulta a impossibilidade de implementação de estratégia coerente, continuada num tempo mais largo que o do mandato, integrada vertical e horizontalmente, linear do ponto de vista da orientação para a solução completa dos problemas das populações e buscando a coesão, a complementaridade e a racionalização da política de investimentos que maximize sinergias e potencialidades regionais a partir de especializações locais.
Exemplo acabado deste tipo de autarcas impreparados e sempre disponíveis para cavalgar qualquer onda veio do noviço edil de Murça que, recentemente, pretendeu fixar população por decreto, financiando casamentos a troco de juras de amor eterno às terras da mãe Tó. Mas a última ainda escalda e resume-se à tentativa de tirar partido do cenário de calamidade pública, em plena hora de consternação nacional, para atrair ao seu concelho, no qual a área ardida foi diminuta, para felicidade das suas gentes e que ele se mostra incapaz de reconhecer e realçar, o manto compensador das iniciativas governamentais. Exibindo um total e despudorado desprezo pela dor das populações dos concelhos mártires, requer igual tratamento para Murça, apesar de reconhecer não ser a sua condição comparável à daqueles, a título de antecipação por danos eventuais, ainda não sofridos, mas passíveis de ocorrer no futuro, pois "estamos no início da época". O "governador" da Alijó, na mesma circunstância, terá pretendido juntar as perdas deste Verão (reduzidas) às verificadas no ano anterior para perfazer um volume de danos elegível para mais um assalto à mesa do orçamento.
Demonstração cabal da impossibilidade de o actual quadro autárquico parir consensos, estratégias colectivas globais, amplas solidariedades e definição de prioridades amplamente negociadas, apesar das estruturas colegiais de concertação supramunicipal no activo (Associações de Municípios federadas por uma lógica de vizinhança ou a confederação da totalidade dos municípios transmontanos - AMTAD), pode retirar-se da muito actual contestação, sustentada pelo autarca de Moncorvo, à solução apresentada pelo estudo prévio, em fase de consulta pública, relativa ao troço do IP 2 entre Macedo de Cavaleiros e a ponte do Sabor (Moncorvo). Concordamos que, sendo esta uma via estruturante a mais decisiva para a indução do desenvolvimento do interior em todas as suas latitudes, não se compreende por que motivo aqueles cerca de cinquenta quilómetros têm de afunilar numa via de perfil simples, abandonando o perfil de auto-estrada com que vem lançado do Algarve à Guarda. Mas a revolta de Aires Ferreira não se consome naquela oposição, antes se dirige contra "as forças vivas com responsabilidades distritais" que, alegadamente, atribuem "um tratamento e uma importância diferente aos dois IPs do distrito" (campanha de duplicação integral do IP 4). E, continuando na sua missão de despertar consciências, o Presidente da Câmara de Moncorvo refere que, apesar de a sua reclamação constituir, igualmente, reivindicação da Associação de Municípios de Trás-os-Montes e Alto Douro, "poucos autarcas têm batido o pé por esta solução".
Grave problema do nosso sistema autárquico é a sua confessada gula nunca saciada qualquer que seja o volume de transferências de fundos. O impacto da sua acção na vida das populações é actualizado, diariamente, pelo cartel ANMP, já a contabilização total dos fabulosos meios financeiros administrados ao longo destes últimos trinta anos e a projecção de cenários alternativos de aplicação mais criteriosa é empresa demasiado ciclópica para tão pouca vontade. Faz sentido colocarmos a questão - e a dúvida - da eficácia da aplicação reprodutiva dos fundos postos à disposição do sistema autárquico, apesar do alegado impacto positivo, que de tão decantado mais contribui para legitimar a sua negação, pois sempre se poderá afirmar estar ele aquém do que deveria de cada vez que se ouve falar de desvios, sacos azuis ou apropriação indevida em misturas explosivas e promíscuas de financiamento partidário, futebol ou construção civil. Não vou invocar, agora, o caso ocorrido no coração da região do vinho verde por ele não carecer mais de publicidade. Mas aí temos Marco de Canaveses, Estarreja, Cascais, Águeda, Resende e, ultimamente, Amarante e Tondela. E por cada uma destas situações tornadas públicas, quantas restarão, mais ou menos tempo, encobertas por um sistema aberto, sem regras de recrutamento para além da habilidade política, propícia a insondáveis enigmas como a lenda do obscuro professor de trabalhos manuais que se alcandora à categoria de dinossauro vivo da causa autárquica, ao fim de décadas de sacerdócio militante na condução de uma cidade top-five das urbes portuguesas?
Há dez meses atrás, assisti à apresentação do orçamento de uma câmara da nossa terra a executar no corrente ano. À falta do original, foi distribuída, antes, uma peça propagandística que visava explicá-lo. Desavergonhadamente, realçava as despesas correntes em relação ao investimento. E nestas não se coibia de sublinhar as despesas com pessoal (40%) - a subir, apesar do congelamento de novas admissões, por força dos aumentos salariais previstos (3,5%!!!) - e de advertir para "as consequências graves que algumas delas têm na vida dos Mirandelenses se forem reduzidas significativamente". E continuava o raciocínio, tão escorreito do ponto de vista político, como canónico do prisma da teoria económica: "(...) em alturas de recessão e de crise financeira, se a Câmara Municipal não contribui para atrair pessoas, promovendo alguns eventos importantes (tradução: arraial "pimba" travestido de feira de actividades económicas, jet-ski e festas), são os mirandelenses que deixam de gozar as mais-valias. É preciso, também, compreender que os comerciantes e industriais da nossa terra vivem muito das compras e aquisições de bens e serviços da Câmara Municipal". Quanto ao investimento, algum é genuíno e outro não passa de mera despesa (zonas verdes, complexos desportivos e lazer, etc.), quando carências gritantes subsistem na qualidade do abastecimento de água ao domicílio, por exemplo. Tudo isto irá orçar em € 23 600 000! Notável é, igualmente, o volume de transferências para o conjunto das 47 freguesias a título de delegação de competências: € 700 000! E não digam que eles não são uns "mãos rotas"...
Quando acima reflicto acerca da aplicação autárquica dos fundos ao longo da história democrática pós-abril, quero extrapolar estes números (estaremos a falar de um valor de € 600 000 000 a € 700 000 000 / ano para a totalidade de Trás-os-Montes? Ou será ainda superior?) e pôr em destaque a sua magnitude em comparação com os benefícios apurados. É que se descontarmos os investimentos estruturantes efectuados, em igual período, pelo governo central - estradas, obras de arte, escolas, hospitais, telecomunicações, etc. - mais os que foram produzidos pela iniciativa privada, o que tem para apresentar o municipalismo transmontano?

A Proposta
Esta ousadia pretende ser uma solução (u)tópica, logo sem ambições imperialistas e expansionistas, que procura, pela aplicação de critérios essenciais à consecução de uma estratégia de desenvolvimento regional, no sentido da recuperação do atraso em relação a regiões mais ricas do continente português, dentro de uma matriz democrática e na exigência de uma reforma constitucional. Trata-se de advogar uma REGIONALIZAÇÃO CENTRALIZADORA pela substituição da complexa rede administrativista actual por uma cúpula executiva que promova a agregação de competências de grau superior e que desempenhe, simultaneamente, um tríplice papel: único interlocutor da administração central na região, única estrutura deliberativa e executiva na esfera regional, com capacidade de planeamento, execução e controlo de estratégia de desenvolvimento e braço do estado central para a execução de políticas integradoras e de coesão nacional. Além da necessária impressão digital democrática diferenciadora, esta proposta quer-se compatível com a aposta, repetidamente sufragada, de reforço das cidades médias, cuja capacidade de atracção sobre as áreas rurais provocou e agravou o despovoamento destas.
Os postulados e os efeitos de tal reforma são:
1. Agregação territorial constitutiva de uma placa geográfica comum, com dimensão económica relevante, proporcionando uma base social e uma visão de conjunto indispensáveis à mudança estrutural de políticas e prioridades;
2. Maior distanciamento entre eleitores e eleitos, com diminuição da ingerência, influência e desvirtuamento da acção política, resultando decisões mais objectivas, fundamentadas e respeitadoras dos princípios da generalidade e universalidade das normas;
3. Formação de uma elite de quadros executivos e técnicos, a partir do "alfobre" universitário regional, como factor crítico de desenvolvimento pela contribuição prestada ao processo de decisão política;
4. Distanciamento entre estruturas de poder e agentes empresariais, por força da extinção de estruturas decisórias locais que com estes viviam em concubinato;
5. Aumento da fiscalização da acção política, por efeito das acções de sindicância de uma câmara mais heterogénea e democrática, do ponto de vista da sua composição;
6. Diminuição da corrupção e dos seus efeitos nefastos na sangria de dinheiros públicos, do clientelismo político e social e de outras formas mais ou menos sofisticadas de parasitagem;
7. Maior racionalidade na elaboração e execução de planos e orçamentos e maior facilidade e eficácia no controlo, por instâncias superiores (Tribunal de Contas), da legitimidade dos actos praticados;
8. Desburocratização por efeito de reestruturação de serviços, supressão de duplicações desnecessárias e concentração das principais funções, visando uma maior eficácia e rapidez de resposta e ganhos de transparência e objectividade dos negócios jurídicos;
9. Reafectação de recursos humanos, libertados por aquela reestruturação, a actividades "civis", dinamizando um mercado de emprego paralisado e tão carente de activos mais qualificados;
10. Melhoria das condições de aplicabilidade prática da produção intelectual dos centros de investigação e excelência;
11. Atracção para a política de quadros mais capazes, dinâmicos e ambiciosos, pelo efeito do ganho de escala alcançado;
12. Capacidade de negociação reforçada, à custa de uma modificação ou mesmo inversão da posição negocial, perante médios e grandes fornecedores, com vantagens directas na contratualização em geral e indirectas em razão de parcerias, cooperação ambiental, mecenato para a criação, promoção e fruição da actividade cultural e todas as formas possíveis de sponsorização reciprocamente vantajosas;
13. Efeito psicológico com repercussão no dinamismo induzido pelo sentimento de pertença a uma comunidade mais ampla, una, mais rica e solidária, mais relevante e respeitada no todo nacional, mais coesa e participada e mais justa na distribuição do rendimento.
Todas estas condições e efeitos pretendidos concorrem e são garantidos pela aplicação de um modelo administrativo de superação do sistema autárquico municipal, constituído por uma Junta e uma Assembleia regionais que reflictam uma dimensão demográfica, mas, também, uma ponderação do espaço físico que sobrevive à desertificação humana e que, apesar disso ou por esse facto, carece da protecção de uma apurada e moderna consciência ambiental.
O sistema assenta em círculos eleitorais delimitados pelas fronteiras dos actuais concelhos, que perderiam as funções executivas actuais para manterem delegações locais de atendimento aos cidadãos e recolha de
contribuições e taxas. Elegeriam deputados à Assembleia Regional na proporção do número de freguesias (1 / 10 freguesias, por exemplo) e da área ocupada (1 / 100Km2, por exemplo), inscritos em listas partidárias, submetidas a sufrágio directo, sendo a atribuição de mandatos calculada pelo método de Hondt. O partido mais votado formaria o governo regional, nomeando secretários regionais para constituição da Junta. A liderança regional do partido mais votado gozaria de liberdade de recrutamento, não estando vinculada aos nomes constantes da lista, mas tal discricionaridade não se verificaria em relação às pastas ou pelouros a atribuir, cujo número e designação deveria constar de norma geral que os fixaria, com carácter vinculativo, de acordo com as funções atribuídas por lei a este nível de administração desconcentrada.
Este exercício especulativo terá debilidades, sobretudo ao nível da exequibilidade, que nada me custa a admitir e corrigir, mas terá, igualmente, virtualidades que vão para além da sua lógica arquitectónica e que me motivam a aprofundar, a demonstrar e a defender, onde quer que me seja solicitado ou permitido. Não será com base em argumentos que invoquem a rigidez do sistema constitucional e a perfeição da sua cristalização actual que me refrearão a confiança num sistema desta natureza para vencer o nosso proverbial atraso.
Alguma coisa vai ter de ser feita contra esta fatalidade cada vez mais tenebrosa, nenhuma dúvida subsiste. No decurso do III Congresso de Trás-os-Montes, escutei uma excitante prelecção proferida pelo Doutor Luís Ramos, professor da UTAD. Num brilhante ensaio de prospectiva, situou-nos no ano da graça de 2022, por ocasião da realização do IX Congresso. No relatório por ele elaborado, a pedido da Junta Regional, que se apresta para divulgar aos congressistas, historia os feitos notáveis alcançados pela região de Trás-os-Montes ao longo dos pretéritos vinte anos e atribui-os à mudança estrutural operada pela adopção do modelo da regionalização: inversão do processo de sangria demográfico, com ganhos populacionais, embora modestos, vincada tendência de urbanização da região, pelo reforço do peso das cidades médias na concentração demográfica e pela consolidação de eixos urbanos, novos modelos de planeamento da rede viária e telecomunicações, etc... Pormenor pitoresco deste exercício de projecção consiste no facto de o Presidente da Junta ser do sexo feminino, o que associado à circunstância de um dos pilares da recuperação demográfica assentar na imigração, permite-me rejubilar com a surpreendente evolução civilizacional da alma transmontana, em tão curto lapso temporal e vaticinar - também eu! - que a senhora terá, quiçá, sotaque eslavo.
Penso ter deixado clara a minha oposição ao modelo regionalista clássico. Sou pela simplificação e considero insustentável uma evolução futura baseada numa complexa teia burocrática, com demasiadas zonas cinzentas de intercepção de responsabilidades. Prefiro o meu caminho, mas concordo com o Doutor Luís Ramos que nada se operará sem antes se acabar "(...) com o velho e caduco modelo de organização e administração do território". Divergimos, ainda, no papel reservado aos municípios, que na profecia referida não parece beliscado e que, quanto a mim, integram o quadro organizacional fora de prazo de validade pelo que representam de incompetência, cega e insaciável capacidade reivindicativa que paralisa governos e ameaça a democracia de cada vez que agita a demagogia e o populismo, sempre que exibe a corrupção e a impunidade.
É a hora da imaginação e do contributo, do brainstorm vigoroso e esclarecido, da assumida utopia, da ideia radical e mobilizadora (da cidade PortoGaia do nosso futuro, por exemplo! Proibido extrapolar daqui outras leituras de eventual proselitismo que tomarei por ilegítimas).

06 agosto 2003

Producao Agro-alimentar Transmontana

Produção Agro-alimentar Transmontana: o derrube dos mitos

A propósito do I Congresso Ibérico do Azeite, que decorreu em Vila Flor no passado mês de Julho, resolvi partilhar uma reflexão amadurecida há já certo tempo e que este congresso enriqueceu de argumentos.
Calculo que tenha dez anos a formalização conceptual da ancestral efabulação da imaculada qualidade dos produtos agrícolas e agro-industriais transmontanos, apresentados como lídimos descendentes do celestial maná, alimento do povo eleito do qual, por feliz e sensacional investigação genealógica recente, se concluiu descendermos.
A sistematização do conhecimento, da prática, do saber-fazer agro-alimentar transmontano teve a sua sede na DRATM, cujos técnicos, afanosamente, conduziram o processo de fixação do elenco das raridades e desaparecidas especialidades, misturadas com preciosas criações de falso pedigree, à laia de Grande Código de Preservação da Genuinidade. No seu afã de tudo catalogarem, conseguiram averbar um recorde de registos de produtos de denominação de origem protegida no almanaque europeu deste património e, provavelmente, no Guiness Book (a amplitude da "registite" aguda vai dos clássicos, como a carne mirandesa ou a azeitona negrinha de Freixo, às fraudes intelectuais, como sejam a criação ex nihilo do queijo de Trás-os-Montes, perdão, terrincho ou o fumeiro de Vinhais, assente no milagre genético da ressurreição de uma raça autóctone de porco, o bísaro ou bizarro, como gosto de designá-lo, por força do seu regresso do Além e por assunção da corruptela, permitida pela liberdade de criação literária que me outorgo. Nunca Trás-os-Montes teve um queijo emblemático, como as Beiras têm, por exemplo; logo a protecção administrativa para produtos com tradição, mas em risco, objectivo primeiro do sistema de certificação, está, neste caso, prostituída. Quanto ao fumeiro bísaro, para além da sua origem "lendária", nunca suficientemente documentada, sofreu um tal boom, promovido em feiras fora-da-lei-mas-dentro-do-nacional-porreirismo-das-autoridades-sanitárias, que, nem que toda a linhagem bísara, desde Abraão, fosse convocada, por celestiais cornetas, a um segundo sacrifício, não se armazenaria stock suficiente de matéria-prima). Depois, propalou-se a ideia de que a certificação era panaceia e garantia de mercado e de escoamento das produções. Chegou mesmo a atestar-se que a procura era de tal maneira elástica que absorveria qualquer preço. Hoje em dia, nada releva o facto de estudos oriundos da UTAD provarem a ineficácia comercial e o nulo impacto socio-económico local da iniciativa, atendendo à deficiente estratégia de comercialização e à nula expressão económica da maior parte das denominações registadas.
Ao contrário do que se passa por cá, na vizinha Galiza, já em 1996, quando visitava uma feira de produtos de agricultura biológica (Ourense) e denominações de origem protegidas, registei diferenças significativas. Enquanto nos entretínhamos a rechear o cabaz com mel de Montesinho, da Terra Quente mais o do Marão, com a couve penca da Vilariça, da veiga Chaves e a sua irmã tronchuda de Mirandela, por lá protegia-se o mel da Galiza, a batata da Galiza, ... da Galiza. Ou seja, enquanto por cá se investia em classificar as miudezas bizantinas diferenciadoras de produtos do mesmo género e espécie, num exercício etno-cultural, digno espólio de museu, por lá imperava a simplificação de processos e a abrangência de critérios de classificação e padronização ao serviço de uma estratégia comercial de valorização económica da actividade agrícola. Só esta racionalização e gestão criteriosa de meios e objectivos potencia sinergias, ganhos de escala e competitividade suficientes para cumprir as exigências colocadas pela distribuição moderna e aproveitar os benefícios dessa cooperação: aceder a mercado alargado, exigente e dinâmico. Esta sintonia com o mercado, óbvia em Espanha, como vimos e como prova a vitalidade do seu sector agrícola e agro-industrial, é uma urgência enfatizada, uma vez mais, pelo mais recente relatório Porter para o cluster dos vinhos. Refere ele a necessidade de criação de um vinho de Portugal, síntese das mais representativas castas das várias regiões vinícolas nacionais, como forma de beneficiar da fácil identificação e desejável fidelização do consumidor internacional. De conceito semelhante anda a beneficiar, há muito, o vinho Mateus, mas, conhecendo nós os comentários jocosos que por cá lhe dedicam e a tradicional resistência à cooperação e partilha em favor das rivalidades de confraria, somos levados a advinhar um interminável caminho até esse desiderato ou o arquivamento do último Porter na Torre do Tombo.
Estes nossos tutores são responsáveis, ironia à parte, por perpetuar a ilusão de que os produtos agro-alimentares nordestinos são "os melhores do mundo": a melhor castanha, a melhor cereja, o melhor azeite ... globais! Avaliando a renda de miséria disponível da nossa lavoura, conclui-se que não retiramos desta bazófia qualquer benefício compatível com o alegado estatuto de superioridade pacóvio, com o prazenteiro autoconvencimento provinciano. Mas que importância tem tal facto para a mentalidade de aristocrata falido, vivendo, nostálgico, de recordações, esse tipo social que tão bem nos define nos dias de hoje? Mas este é um dos principais fundamentos do nosso atraso: vangloriamo-nos com a estridente proclamação de suposta excelência, mas, ou não cuidamos de aferi-la em confronto com a qualidade alheia ou, nos casos em que tal ponderação tem lugar, acabamos afogados na vergonha de ter de reconhecer incapacidade própria.
E não resolve, antes agrava porque adia o grande momento de catarse da alma colectiva, silenciar os maus resultados alcançados, por exemplo, pelos nossos mais representativos azeites, avaliados em provas cegas organizadas por publicações de epicuristas gourmets; ou assobiar para o lado quando confrontados com a contundente classificação de má qualidade, atribuída aos mesmos, pronunciada por renomada personalidade do meio académico, em pleno congresso do sector recentemente levado a efeito em Vila Flor (1). Aliás, nesse evento teve lugar um concurso da aurífica gordura em que certos consagrados não obtiveram mais que um diploma de participação, tendo ganho, em toda a linha, uma casa de fundação recente, mas auspiciosa, que vem desenvolvendo trabalho sério, profissional e pioneiro, aplicando know-how e tecnologia italianos. Esta origem estrangeira, que faz a diferença, será, meramente, circunstancial e despicienda ou será, antes, oportuna, visionária, decisiva e esclarecedora acerca do percurso e das escolhas a seguir, nesta com em outras produções?
O drama da nossa agricultura, para além das pirraças várias colocadas pela mãe natureza, quase sempre avara, mas nem sempre vencedora dos desafios que, permanentemente, coloca ao homem transmontano, encontra-se na falta de vocação comercial evidenciada pela sua tutela intelectual, planificadora e técnica. Medida audaz seria, para além da inclusão do sector primário na pasta da economia, com os ganhos inerentes de racionalidade e eficácia, projectar a alteração estatutária deste jugo da hipotecada, subjugada, envelhecida e adiada agricultura do nordeste, mantendo a natureza pública, mas adquirindo características societárias de direito privado, um pouco à imagem da intervenção do Ministério da Saúde no sector dos hospitais. A medida seguinte deveria visar a aquisição, para o novo organismo, de competências no âmbito do marketing e comercial, em prejuízo da excedentária valência técnica e tecnico-administrativa. Necessitamos auscultar o mercado e mais precisamos de quem tenha discernimento e força para impor, mais que a satisfação das necessidades e caprichos do consumidor actual, a antecipação das tendências da procura futura.
Mas como aspirar a tanto, quando a ortodoxia oficial denota tantos equívocos de planificação e orientação estratégica? Podia, mas não estou, agora, a convocá-las, invocar as contradições de quem ora aconselha o plantio, ora o arranque de vinha, cerejeiras ou oliveiras, não necessariamente por esta ordem. Mas quero mencionar e desmontar a doutrina incontestada que nos reserva uma vocação, no domínio da economia agrícola, para a pequena produção de qualidade, num desafio à satisfação de nichos de mercado. Esta política, desenvolvida pela intelectualidade regional, a fazer escola ao nível central e patente numa entrevista, nunca desmentida ou renegada, que li há já certo tempo, atribuída a um dos três ou quatro últimos directores regionais, não tem em conta, obviamente, o esforço, assim atraiçoado, de viabilizar o emparcelamento. E quem assim fala não há-de ter em mente as produções, também apreciáveis em termos quantitativos, de batata da região noroeste da província, a produção silvícola, de vinho e azeite laborados pelas respectivas cooperativas de produção, a produção de maçã de Carrazeda de Ansiães, a de cogumelos de Vila Flor e mais dois ou três exemplos, de negação da tese oficial, que se poderiam acrescentar e entre os quais avultam a capacidade hortícola, ainda não concentrada, dos vários vales e veigas da nossa terra e, sobretudo, a produção de vinho do Porto e sua presença mundial. Tudo expressões da capacidade agrícola com relevância no abastecimento do mercado interno e, nalguns casos, até do externo, apesar de tudo. Do ponto de vista do desenvolvimento agrícola, que se almeja para esta região, que serventia tem a referida nomenclatura ignorante? A resposta encontra-se algures, por entre indicadores de rendimento e bem-estar da comunidade rural, se esvaziados do impacto da subsidiocracia instalada ou vislumbrar-se-à no dinamismo conseguido no recrutamento de jovens agricultores.
Esta corrente de pensamento hegemónico labora em construções mentais mistificadoras que impõem um "small is beautifull" à nossa moda, defendendo uma economia agrícola na base da pequena produção, originária da miríade de pequenas unidades de transformação disseminadas por toda a parte (queijarias, cozinhas regionais, indústrias artesanais de compotas, etc.), da qual se apura uma constelação obscura e bizarra de especialidades, denominações protegidas e variações sobre um mesmo tema que não poderão ter expressão económica, desde logo pela impossibilidade da sua completa apreensão, na sua imensa e improvável diversidade, pelo mercado, bem assim por carecerem, por definição, de massa crítica mínima. Tudo isto na tentativa de esconjurar o modelo de concentração da produção experimentado, com sucesso inicial, pelo emblemático Complexo Agro-Industrial do Cachão. Não aprenderam nada! Avaliam a experiência pelo seu traumático final, sem cuidarem de ponderar razões exógenas decisivas, das quais emerge, como das mais ponderosas, a intervenção estatal pós-revolucionária.
Esta influência manipuladora evade-se do círculo restrito dos gabinetes e expande-se ao ritmo alucinante da universal distribuição assistencialista do rendimento máximo garantido. "Quem dá pão, dá criação!", diz-se por cá. No caso vertente, mão que dá subsídio alcança total supremacia e influência. Pode dizer-se, com propriedade, que a lavoura transmontana actual é uma actividade económica conduzida a partir da DRATM, de quem o agricultores são meros agentes executantes, cabendo-lhe o monopólio do risco. E, ao contrário do consultor convencional, cuja actividade decorre da proposta de reformulação de métodos e processos ao reposicionamento do negócio, respeitando o núcleo inviolável da liberdade de decisão do cliente, aquela elite visa moldar a actividade às suas opções ideológicas, força as decisões com base na especial relação de poder instituída e não parece solidarizar-se com o destino já desvendado e daí extrair consequências institucionais. Decorre daqui o facto dramático de a ideologia confundir os desejos da sua própria despensa, com as necessidades da agricultura nordestina; troca as prioridades desta, enquanto actividade empresarial visando eficiência e resultados, pelos seus caprichos de gourmet.
Pode, pois, dizer-se que a dinâmica daquela instituição gerou, vamos corrigir contrariados, inspirou, numa base de cumplicidades e afinidades pessoais e corporativas e discriminações territoriais oportunísticas, a maioria das associações interprofissionais e agrupamentos de produtores, entidades certificadoras, confrarias de gastrónomos e, por via destas, já influencia o sector da restauração e hotelaria, numa tentativa de antecipação e esvaziamento de manifestações similares que brotassem, espontânea e livremente, da sociedade civil. Na hora do juízo - porque a haverá - na era pós-subsídios de todas as distorções, no momento de aferição do impacto de tal protagonismo no tecido socio-económico regional, é desejável que as cadeiras reservadas aos responsáveis não fiquem vagas.

Conclusão
Impõe-se a morte dos mitos que formatam a imagem distorcida que outrém constrói de nós e que nós já não podemos honrar, por um lado ou da qual necessitamos livrar-nos, em muitos outros casos. Temos de assegurar que aqueles primores de que o leitor se habituou a ouvir falar já não existem ou escasseiam de tal maneira que só alguns residentes permanentes ainda conhecem. Temos de provar que não é sobre estes que tem de assentar uma economia agrícola competitiva. Precisamos de comunicar que o que para aí tem disponível são réplicas, na generalidade dos casos muito deficientes, apresentadas de forma enganosa, resultado do desenvolvimento de uma estratégia errada. Temos de apregoar que a circunstância de os odoríficos e suculentos pêssegos da Vilariça provirem de árvores californianas, de o espantoso azeite de Almendra (Foz Côa) ter cuore italiano e de o vinho do Douro ter subido do inferno ao paraíso em menos de duas décadas, de vinho de pasto ao aplauso unânime que hoje recolhe, fruto de know-how e tecnologia de ponta, americana, francesa ou australiana, sorvidos por novas castas de enólogos, esta circunstância, dizia, não se reduz a um handicap que se deva ocultar, mas é antes uma vantagem competitiva a explorar, a imitar e a estender a outras produções, base sobre a qual repousa, adormecido, o futuro da agricultura transmontana.

(1) "Metade do azeite produzido em Portugal não tem qualidade... só é bom para ser refinado", José Gouveia, Instituto Superior de Agronomia. Logo, o transmontano...

Agradecimentos 2

Agradecimentos

Ao Adufe, por nos ter encontrado na galáxia da blogosfera nacional, o que já é um feito digno de nota. Depois, registo a generosidade dos comentários e dos votos manifestados. Mas o que mais me tocou foi, perdoe-me o narcisismo, saber que o sentido exacto da minha trombeta do desassossego das consciências foi captado. Todas as incompreensões são esperadas e prováveis, mas não deve finar-se a coragem da denúncia. Bem haja.

02 agosto 2003

O País a Arder

O País a Arder

Mais de trinta incêndios consomem Portugal de norte a sul. Os "heróis do momento", como lhes chamou o senhor ministro da Administração Interna, exaustos, guerreiros de uma batalha desigual, já não conseguem assumir sozinhos tão brutal combate. Avisadamente, a tutela solicitou a solidariedade comunitária e as manifestações de amizade começam a chegar de Itália.
No mapa da catástrofe figura uma chama em Trás-os-Montes, Torre de Moncorvo é o cenário.
Enquanto isto, os soldados da paz mirandelenses, bafejados pela sorte que parece ter protegido o concelho e livres de qualquer íntimo imperativo de solidariedade, dedicaram-se a prazeres dionisíacos, sardinhadas e bombos em plena época de festividades concelhias e alheios a qualquer sentimento de consternação nacional.
Nem todos os heróis têm estatura; nem sempre a primeira ajuda vem de vizinhos ou nem sempre a Itália é tão longínqua ou Portugal tão curto quanto aparentam.