uma Reforma Administrativa
Contribuição para uma Reforma Administrativa - I Parte
A regionalização, proposta e referendada em tempos, não vingou porque os seus mentores não conseguiram descolá-la da ideia de "venda a retalho" da nação e permitiram que a víssemos como um colossal e injustificado alargamento do quadro de pessoal político e o correlativo peso acrescido na despesa pública. Como explicar que o governo da república responsabilize, ao nível político, duas ou três dezenas de cidadãos e a administração regional passe a implicar eleitos aos milhares?
Mas nem por isso perdeu actualidade e pertinência a necessidade de uma reforma administrativa, até pelas tentativas recentes de ultrapassar os bloqueios de integração e complementaridade dos vários níveis da estrutura orgânica do estado. Estas são a prova da desconfiança inconfessada no sistema municipal por parte da administração central. Só o prestígio inatacável de que este goza ao nível da intelectualidade dominante, já não acompanhada pelo cidadão comum que o "dessacralizou" há muito, provoca e justifica o pudor do estado central na admissão da falência do municipalismo, mitigando este reconhecimento com a admissão de uma etapa prévia de coabitação entre o regime caduco e o devir. Aquele pensamento hegemónico funda na tradição a ideia imutabilidade do municipalismo português, em vez de curar de avaliar a qualidade da resposta deste aos problemas sociais e económicos hodiernos. Depois, esta posição arrogante impede-o de ser consequente, apoiando, igualmente sem reflexão crítica, outras tradições que passa a apodar, correcta e incoerentemente, de selváticas e de manifestações de atraso civilizacional. E como compreender, igualmente, que não vejamos esta corrente impetuosa em apoio entusiasta aos actos melodramáticos recentes de criação de novos municípios a la carte e aos agitadores das emancipações paroquiais que cavalgam a mesma esteira - quem diria?- da tradição? Se o sistema é bom e responde adequadamente, não há-de ser má a sua reprodução continuada e assistida. E todos poderão beneficiar, ainda mais, do contacto cada vez mais íntimo e próximo com esta realidade. Saia mais um município para o meu quintal!
Vivemos, ainda, um tempo em que o sacrossanto municipalismo aparece, no plano da luta política, com a força e infalibilidade de dogma; aos meus olhos, como um fatalismo que, embora me não "congele" o pensamento, me arrefece o optimismo e a esperança. Discute-se, hoje, a democracia e o seu "aprofundamento" (que pode ler-se como sinónimo de substituição), como, no passado, se debateu o regime monárquico e a sua extinção e, mais recentemente, se adoptou, sem discussão pública, a regionalização insular. Tudo isto num ambiente de tolerância e sem lançamento de anátemas. Já a reforma do municipalismo, proposta nos termos em que o faço, não poderá deixar de ser tomada por heresia e de carregar com todo o tipo de vitupérios aos quais sobreviverei pela feliz coincidência de ser já defunta a Inquisição.
Pôr em causa o municipalismo na sua versão contemporânea, essa perene aquisição da humanidade, esse cristalizado avanço civilizacional, essa fossilização constitucional, pode ser façanha quixotesca. Homenagem seja prestada ao poderoso lobby da Associação Nacional de Municípios Portugueses (curiosidade: alguém me sabe informar qual o teor da tomada de posição da ANMP, no contexto do embuste da criação de novos municípios? Terá alinhado por uma posição solidária para com os seus filiados, Nelas e Ourém?) e à sua estratégia clara e continuada, oportunista e chantagista, apesar dos percalços cada vez mais frequentes e estridentes. Para estes sentencio: Rua(s)!
Apesar de tudo, após a tomada de posse do actual governo, tornou-se cada vez mais nítida a deriva verificada no relacionamento institucional, que evoluiu dos municípios para outras estruturas administrativas supramunicipais. Depois do III Congresso de Trás-os-Montes, os recentemente substituídos titulares das pastas das Cidades e das Obras Públicas ainda ensaiaram o diálogo com a Associação de Municípios do Nordeste Transmontano, com quem pretenderam discutir um plano integrado de desenvolvimento regional.
A 13 de Maio do corrente ano a orientação da administração central sofreu nova inflexão com a publicação das Leis nº 10 e nº 11 (regulam o regime de criação das áreas metropolitanas e das comunidades intermunicipais, respectivamente). O objectivo consistia em superar o impasse que se traduzia na impossibilidade prática de contratualizar estratégias de desenvolvimento aplicáveis a uma placa territorial contínua, representada por estruturas administrativas fragmentárias, muitas vezes concorrenciais, incapazes de abdicar dos seus interesses particulares em nome de uma concertação estratégica que vise o desenvolvimento integrado da unidade territorial, embora cobertas por legitimidade democrática. A operacionalidade do novo enquadramento administrativo tem as suas virtudes e limites bem ilustrados pela recente declaração proferida pelo Dr. Fernando Ruas, presidente da Câmara de Viseu e presidente da ANMP: as "áreas metropolitanas existentes eram impostas, mas agora têm de ser aceites pelos autarcas"(sic). Terá de admitir-se, por ser verdade, que a mesma capitulação se acha consagrada no quadro normativo da criação das comunidades intermunicipais, instâncias cujos critérios de constituição se verificam na nossa região. Ou seja, depois de esgotada uma limitação temporal inicial, só existirão se e enquanto for desejo daqueles. Os fundadores não estão vinculados à sua constituição, nem estes órgãos terão estabilidade bastante para assumirem estatuto de superestrutura executiva regional.
Podemos perguntar-nos: o que trouxeram de inovador e o que prometem estes novos nós de interacção com o governo central? Estão dotados de legitimidade democrática directa? Não. São de constituição compulsiva? Não. Tomam ou esvaziam os municípios, as Associações de Municípios e as CCDRs de algumas das suas competências? Não. Tem competência executiva para fixar um programa de governo e um orçamento regionais; e são as autarquias reconduzidas a um papel de aplicação local da parte desse programa e orçamento que lhes é fixada, convertendo-se o presidente da câmara em administrador-delegado? Não. Fica implícita a resposta à primeira destas questões.
Repete-se o constrangimento com instâncias superiores de planificação, as CCR, dotadas do know-how necessário à planificação e articulação de programas, mas a que falta aquele requisito de legitimação que potencia a adesão voluntária aos desígnios propostos e permite o escrutínio da sua acção.
A reformulação orgânica das CCR, que parece não ter ido muito além da actualização da designação (CCDR), coeva da criação das novas instâncias de poder referidas, de parceria com as velhas conhecidas Associações de Municípios e estes propriamente ditos, formam uma complexa teia de competências e atribuições partilhadas, comuns, sobrepostas, duplicadas, indiferenciadas, constituindo uma imensa mancha cinzenta de disputas permanentes e rigidez burocrática asfixiante. Quando o quadro de competências de uma estrutura é secante com o de outra de grau superior ou inferior e quando os mesmos agentes têm reserva de assento em todas, o que se pode esperar desta conflitualidade de papeis? A ingovernabilidade regional está instalada e, com ela, a ineficácia da acção política.
Precisamos de uma revolução administrativa. Precisamos de simplificar a estrutura actual em que vigora uma complexa e ineficiente arquitectura de organismos.
A regionalização, proposta e referendada em tempos, não vingou porque os seus mentores não conseguiram descolá-la da ideia de "venda a retalho" da nação e permitiram que a víssemos como um colossal e injustificado alargamento do quadro de pessoal político e o correlativo peso acrescido na despesa pública. Como explicar que o governo da república responsabilize, ao nível político, duas ou três dezenas de cidadãos e a administração regional passe a implicar eleitos aos milhares?
Mas nem por isso perdeu actualidade e pertinência a necessidade de uma reforma administrativa, até pelas tentativas recentes de ultrapassar os bloqueios de integração e complementaridade dos vários níveis da estrutura orgânica do estado. Estas são a prova da desconfiança inconfessada no sistema municipal por parte da administração central. Só o prestígio inatacável de que este goza ao nível da intelectualidade dominante, já não acompanhada pelo cidadão comum que o "dessacralizou" há muito, provoca e justifica o pudor do estado central na admissão da falência do municipalismo, mitigando este reconhecimento com a admissão de uma etapa prévia de coabitação entre o regime caduco e o devir. Aquele pensamento hegemónico funda na tradição a ideia imutabilidade do municipalismo português, em vez de curar de avaliar a qualidade da resposta deste aos problemas sociais e económicos hodiernos. Depois, esta posição arrogante impede-o de ser consequente, apoiando, igualmente sem reflexão crítica, outras tradições que passa a apodar, correcta e incoerentemente, de selváticas e de manifestações de atraso civilizacional. E como compreender, igualmente, que não vejamos esta corrente impetuosa em apoio entusiasta aos actos melodramáticos recentes de criação de novos municípios a la carte e aos agitadores das emancipações paroquiais que cavalgam a mesma esteira - quem diria?- da tradição? Se o sistema é bom e responde adequadamente, não há-de ser má a sua reprodução continuada e assistida. E todos poderão beneficiar, ainda mais, do contacto cada vez mais íntimo e próximo com esta realidade. Saia mais um município para o meu quintal!
Vivemos, ainda, um tempo em que o sacrossanto municipalismo aparece, no plano da luta política, com a força e infalibilidade de dogma; aos meus olhos, como um fatalismo que, embora me não "congele" o pensamento, me arrefece o optimismo e a esperança. Discute-se, hoje, a democracia e o seu "aprofundamento" (que pode ler-se como sinónimo de substituição), como, no passado, se debateu o regime monárquico e a sua extinção e, mais recentemente, se adoptou, sem discussão pública, a regionalização insular. Tudo isto num ambiente de tolerância e sem lançamento de anátemas. Já a reforma do municipalismo, proposta nos termos em que o faço, não poderá deixar de ser tomada por heresia e de carregar com todo o tipo de vitupérios aos quais sobreviverei pela feliz coincidência de ser já defunta a Inquisição.
Pôr em causa o municipalismo na sua versão contemporânea, essa perene aquisição da humanidade, esse cristalizado avanço civilizacional, essa fossilização constitucional, pode ser façanha quixotesca. Homenagem seja prestada ao poderoso lobby da Associação Nacional de Municípios Portugueses (curiosidade: alguém me sabe informar qual o teor da tomada de posição da ANMP, no contexto do embuste da criação de novos municípios? Terá alinhado por uma posição solidária para com os seus filiados, Nelas e Ourém?) e à sua estratégia clara e continuada, oportunista e chantagista, apesar dos percalços cada vez mais frequentes e estridentes. Para estes sentencio: Rua(s)!
Apesar de tudo, após a tomada de posse do actual governo, tornou-se cada vez mais nítida a deriva verificada no relacionamento institucional, que evoluiu dos municípios para outras estruturas administrativas supramunicipais. Depois do III Congresso de Trás-os-Montes, os recentemente substituídos titulares das pastas das Cidades e das Obras Públicas ainda ensaiaram o diálogo com a Associação de Municípios do Nordeste Transmontano, com quem pretenderam discutir um plano integrado de desenvolvimento regional.
A 13 de Maio do corrente ano a orientação da administração central sofreu nova inflexão com a publicação das Leis nº 10 e nº 11 (regulam o regime de criação das áreas metropolitanas e das comunidades intermunicipais, respectivamente). O objectivo consistia em superar o impasse que se traduzia na impossibilidade prática de contratualizar estratégias de desenvolvimento aplicáveis a uma placa territorial contínua, representada por estruturas administrativas fragmentárias, muitas vezes concorrenciais, incapazes de abdicar dos seus interesses particulares em nome de uma concertação estratégica que vise o desenvolvimento integrado da unidade territorial, embora cobertas por legitimidade democrática. A operacionalidade do novo enquadramento administrativo tem as suas virtudes e limites bem ilustrados pela recente declaração proferida pelo Dr. Fernando Ruas, presidente da Câmara de Viseu e presidente da ANMP: as "áreas metropolitanas existentes eram impostas, mas agora têm de ser aceites pelos autarcas"(sic). Terá de admitir-se, por ser verdade, que a mesma capitulação se acha consagrada no quadro normativo da criação das comunidades intermunicipais, instâncias cujos critérios de constituição se verificam na nossa região. Ou seja, depois de esgotada uma limitação temporal inicial, só existirão se e enquanto for desejo daqueles. Os fundadores não estão vinculados à sua constituição, nem estes órgãos terão estabilidade bastante para assumirem estatuto de superestrutura executiva regional.
Podemos perguntar-nos: o que trouxeram de inovador e o que prometem estes novos nós de interacção com o governo central? Estão dotados de legitimidade democrática directa? Não. São de constituição compulsiva? Não. Tomam ou esvaziam os municípios, as Associações de Municípios e as CCDRs de algumas das suas competências? Não. Tem competência executiva para fixar um programa de governo e um orçamento regionais; e são as autarquias reconduzidas a um papel de aplicação local da parte desse programa e orçamento que lhes é fixada, convertendo-se o presidente da câmara em administrador-delegado? Não. Fica implícita a resposta à primeira destas questões.
Repete-se o constrangimento com instâncias superiores de planificação, as CCR, dotadas do know-how necessário à planificação e articulação de programas, mas a que falta aquele requisito de legitimação que potencia a adesão voluntária aos desígnios propostos e permite o escrutínio da sua acção.
A reformulação orgânica das CCR, que parece não ter ido muito além da actualização da designação (CCDR), coeva da criação das novas instâncias de poder referidas, de parceria com as velhas conhecidas Associações de Municípios e estes propriamente ditos, formam uma complexa teia de competências e atribuições partilhadas, comuns, sobrepostas, duplicadas, indiferenciadas, constituindo uma imensa mancha cinzenta de disputas permanentes e rigidez burocrática asfixiante. Quando o quadro de competências de uma estrutura é secante com o de outra de grau superior ou inferior e quando os mesmos agentes têm reserva de assento em todas, o que se pode esperar desta conflitualidade de papeis? A ingovernabilidade regional está instalada e, com ela, a ineficácia da acção política.
Precisamos de uma revolução administrativa. Precisamos de simplificar a estrutura actual em que vigora uma complexa e ineficiente arquitectura de organismos.
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