TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

31 janeiro 2004

Os Estrangeirados

Os Estrangeirados

O Prof. Manuel Paiva concedeu, no prime-time de anteontem, uma muito viva e esclarecida entrevista à RTP.
O cientista portuense, físico de renome nos meios académicos internacionais pelo seu trabalho na área da exploração espacial, radicado na Bélgica desde há quarenta anos, para onde se evadiu da tacanhez “medieval” do meio científico português, veiculou duas mensagens que pretendo enfatizar, de entre um discurso científico empolgante e cuja frescura e actualidade se pretende que sejam mobilizadoras de novas gerações de cientistas: (α) EDUCAÇÃO – a sua universidade não pratica numerus clausus e é aberta a todo o tipo de estudantes sem os compartimentar de acordo com o percurso académico anterior, sendo o acesso ditado, apenas, pela prova de competência e aptidão em disciplinas estruturantes do curso por si visado; (ω) TEOR DE CIDADANIA — a ascensão social pelo mérito e a valorização do esforço e do trabalho como condição do êxito pessoal e colectivo evidenciam o contraste traumático, verificado pelo académico no seu regresso quatro décadas depois, com a “cunha”, instituição lusitana que teima em afirmar-se como chaga perene da nossa afirmação como nação desenvolvida.
Sem vencermos o atraso medievo de um ensino superior regulado, dirigido, cristalizado, atomizado, resistente à mudança e penalizador do espírito crítico, que se quer, cada vez mais, determinado por quotas de licenciados de acordo com supostas leis conjunturais de mercado ou alegada saturação da procura, sistema blindado, marcado pelo nepotismo, o sistema de castas ou linhagens, conservador, pouco aberto à inovação e à renovação, preguiçoso e acomodado nos campos da investigação e desenvolvimento e das aplicações empresariais do labor científico, incapaz de assumir a radicalidade toda que a autonomia encerra — a sua auto-suficiência financeira de que o lançamento de propinas é uma parcela com relevância económica, pedagógica e social —, poucas expectativas de regeneração e atractividade pode gerar em cérebros “estrangeirados” como o Prof. Manuel Paiva ou o Prof. João Magueijo, cujo discurso vai no mesmo sentido e coincide no tom crítico.
O efeito pernicioso na formação das elites, provocado por esta universidade, contribui para a perpetuação da “cunha” como marca distintiva da nossa mediocridade, cuja presença esmagadora na longa diagonal da sociedade portuguesa tanto atrofia e oprime espíritos curiosos, irreverentes e abertos ao conhecimento que nos damos ao luxo de desprezar. Que fazer, Prof. Manuel Paiva e Prof. João Magueijo?

30 janeiro 2004

Citius, Altius, Fortius

« Citius, Altius, Fortius »

Lamentavelmente, o senhor presidente do glorioso Sporting Clube de Portugal, ao lançar mão de linguagem carroceira e inspirado, quiçá, no lema olímpico, adoptado pela sua colectividade (mas caído em desuso, pelo menos no sítio Web oficial), ficará para a história do desporto, como o recordista da velocidade de uma hipotética competição solitária de superação do pesaroso período de luto em que o mundo desportivo mergulhou por estes dias. Mas esta saída do estado de nojo, só possível fazendo apelo à utilidade dos cascos, não podia ser mais desajeitada, de tal modo que é legítimo colocarmos a hipótese de este senhor, em momento algum, ter estado em comunhão de sentimentos com o país desportivo, como quis fazer crer com a sua presença em actos públicos.
Condenar, daquela forma contundente e malcriada, a actuação previdente e legítima do Estado só pode significar a defesa de uma desastrosa irresponsabilidade de alheamento cúmplice perante a utilização crescente, pelo dirigismo manipulador, de cargas explosivas ameaçadoras.

28 janeiro 2004

Poço de virtudes

Poço de virtudes

Ultimamente, Viseu perpassa por este exercício de peneira do tempo que escorre como alfobre de case studies da governação municipal. Hoje trago mais um edificante contributo para a remissão do poder autárquico diante dos seus eleitores, para o prestígio daquele como instrumento de satisfação de necessidades e anseios das populações, face a outros mais “desadequados” por força do seu afastamento geográfico, para a inauguração de um novo cânone de moralidade assente no tão distinguido pragmatismo e para uma visão da comunicação social como vanguarda vigilante e esclarecida do desenvolvimento social e civilizacional.
A notícia de que parto, versando matéria futebolística de uma liga secundária — concretamente, o Académico de Viseu (AV), a sua muito problemática situação financeira e a “cura” prometida por uma milagreira sociedade anónima desportiva (SAD) — começou por me interessar em virtude destes “condimentos” estarem, muito frequentemente, ligados a um qualquer “cozinhado” envolvendo o município da terra. Foi o que se confirmou nos últimos parágrafos da crónica do Público.
Ficámos a saber que o Académico de Viseu, como todos os restantes clubes concelhios, beneficia de um subsídio mensal atribuído pela Câmara, numa interpretação autêntica, genuína que não original, do estatuto do poder autárquico, que boas razões terá para justificar esta discriminação positiva dos futebóis.
Atendendo à condição financeira precária, o AV, accionista maioritário da SAD, é vítima de guerras fratricidas que as disputas de protagonismo não cessam de congeminar. E é por esta razão que as câmaras sentem necessidade de “monitorizar” tais convulsões e mantê-las dentro de margens de segurança aceitáveis e favoráveis à estratégia camarária. A fórmula aplicada ao caso concreto pelo presidente Ruas consubstanciou-se no “congelamento” oportuno das transferências.
O AV foi accionado judicialmente por um ex-atleta e forçado a pagar a este cerca de 150 mil euros. A edilidade, conhecedora da obrigatoriedade do endosso ao tribunal de todas as receitas a apurar, está a reter aquelas prestações, não sem que prometa desbloqueá-las logo que a agremiação resolva o problema.
Em conclusão: (i) com a decisão tomada, CM de Viseu condiciona, de forma ilegítima, as opções correntes do AV, a quem fomentou expectativas ora suspensas; (ii) o município viseense não ignora a força vinculatória da decisão judicial, mas contorna-a habilidosamente — de conluio com os responsáveis do clube? — em vez de colaborar na execução de uma decisão cuja bondade técnica e material ninguém pôs em causa; (iii) a associação, pouco virtuosa, entre clube autarquia, conjugando esforços e cumplicidades para garantir o incumprimento de obrigações contratuais (na observância estrita, aliás, do objecto para que foram instituídos, não é verdade?), revela-se uma afronta ao tribunal e redunda numa ofensa aos direitos de uma vítima lesada duplamente; (4i) conhecedor de todas estas manobras, as autoridades judiciárias nada fazem e tudo permitem, como geralmente acontece sempre que futebol e política dão as mãos; (5i) a comunicação social não pode assistir a tudo e de tudo fazer relato neutro e isento, apenas. É pouco. Dar a conhecer situações destas e permitir à opinião pública o seu debate e censura em off é importante, mas esse dever de informar pode ser complementado com a abertura de espaço de análise, opinião e julgamento técnico-jurídico e político em on. O empenhamento tem de ir para além do mexerico com elevação e empenhamento.

Miklos Fehér

Miklos Fehér (1979 - 2004)

A sua existência terrena foi ceifada antes que pudesse provar, integralmente, o triunfo do bem sobre o mal, que, no fundo, simplisticamente, é ao que se reconduz a “guerra” quotidiana de superação de obstáculos, limitações próprias, injustiças e desonestidades sofridas, por parte de quem pretende manter uma recta conduta ética e moral.
Mas “Miki” já antes tinha sido “ceifado” (gíria futebolística), vitimado por um cocktail explosivo de desavenças familiares, rivalidades várias, com interesses económicos pelo meio, num jogo de marionetas donde estava arredado o respeito devido a um ser humano e aos seus mais elementares direitos cívicos e profissionais. Ninguém saberá avaliar, em toda a sua extensão, os prejuízos irremediáveis que uma “quarentena” forçada lhe terá infligido. A tudo isto soube sobreviver e responder com a tocante e serena verticalidade de um carácter íntegro e determinado.
Talvez seja esta a chave para a compreensão do fenómeno de compaixão que o seu desaparecimento gerou na sociedade portuguesa, muito para além da tribo desportiva de raças e credo vários. O seu profissionalismo tão exaltado e reconhecido, mas também a sua luta silenciosa e solitária e perseverante, reveladora de uma sólida confiança nas suas capacidades e de uma consciência clara dos objectivos a prosseguir sem quebrantos, são uma lição que não podemos deixar perder, sob pena de o desonrarmos.
Sob a capa de manifestações formais e colectivas de pesar, certos responsáveis vão deixando transparecer, pelo contraste, a vergonha e o remorso que os assola, em mais uma manifestação de patente cobardia, em outras ocasiões disfarçada por berrarias tonitruantes. Permitem, agora, que se veja, por mais que se refugiem no silêncio e na penumbra protectores, a sua má índole, a pedra que têm no lugar do coração, a impossibilidade de assumir a culpa e a humildade exaltante de pedir perdão, nem que seja a título póstumo. Tombarão, um dia, sem honra e com eles a legião de cegos seguidores que não souberem – acredito que não saberão – aprender a sábia lição do malogrado Miklos Fehér.

24 janeiro 2004

Contrito me confesso

Contrito me confesso

Esta semana, ao tomar conhecimento do real desequilíbrio da conta-corrente que liga o continente à Região Autónoma da Madeira, a exigir urgente e surpreendente acerto a crédito desta, verifiquei, uma vez mais, como nos atraiçoam as ferramentas sensoriais e cognitivas próprias e como é falível qualquer juízo de valor nelas assente. Enfatizando, embora, o quão esta constatação nos diminui, menos verdadeira e reconfortante não será a crença na nobre capacidade de, uma vez assumida a falta, rogar perdão. É a estes trabalhos que me devoto desde já. Aguardo ser compreendido.
Com efeito, andei anos enredado na inabalável convicção de que vogava, anafado e altivo o jardim ilhéu, mamando, indiferente a mugidos alheios, a limousine açoriana, os bovídeos minhotos, os transmontanos ou o exangue úbere orçamental e eis, agora e de súbito, o inusitado sobressalto das certezas sacudidas. Deve o credor ao caloteiro com uma cambalhota pelo meio. Atentai, senhores, a esta história de pasmar!
A postura circunspecta, aprumada, enformando o perfil de estadista até ao limite da resistência estóica das costuras, quis despertar-me para a capital relevância histórica do momento da comunicação pública e convencer-me da sua adequação à singular mudança. A chancela da senhora ministra fez o resto.
Já para quem releva o passado — os “gentios” de Lisboa, da imprensa ou outros, que não eu, bem entendido! — e a recente pincelada autobiográfica — “(...) sou uma velha meretriz, já perdi a vergonha...” — e acredita na próxima erosão carnavalesca da credibilidade ora demonstrada, desconfiará das intenções da pose e circunstância desta prodigiosa inversão, reduzindo-a a mero efeito de marketing eleitoral. Quão inglório fim e quão injusto o cepticismo! À consideração do consultor...

21 janeiro 2004

À boleia do Funicular

À boleia do Funicular

Quis o Tempestade Cerebral (TC) responder ao meu repto comentando mais um esclarecedor exemplo da imprescindibilidade e infalibilidade da gestão autárquica.
Depois da minha denúncia, este outro excelente olhar exercita uma grelha de leitura que complementa, sustenta e legitima as nossas posições, bem como o estilo bloguista que ambos praticamos: a intervenção crítica na análise socio-económica da política numa perspectiva reformadora de inspiração liberal.
Esta justificação para a nossa presença na blogosfera contrasta e escandaliza-se com outras que se auto afirmam, definem e orientam pelo distanciamento discriminatório de desvalorização dos temas jurídicos e económicos. Mas subalternizar este universo de interdependências, por onde pulsa grande parte da vida do homem actual, significa, frequentemente, abraçar a escaramuça estéril da guerrilha política.
Este espírito de missão, glosado por muitos, mesmo os líderes de audiência deste novel canal, não garante resultados na dimensão da transformação social, mas é um imperativo a que não resistimos.
Voltando à esfera concreta da acção autárquica ora em apreço, concluiu o TC que “a julgar pela data de conclusão da obra (2005) e a data das eleições autárquicas (também 2005???) posso facilmente ‘adivinhar’ qual o retorno pretendido pelo ‘seu’ investimento: votos para o reeleger!!!”. Também nós acreditamos que foi tomado em conta o custo de oportunidade, bem como as aplicações alternativas — aquelas que o TC enumerou ou muitas outras declinações delas — apesar de a decisão, fundamentada em critérios de maximização do “benefício”, não poder ser diferente: nenhuma utilização opcional do capital atingiria tal grau de satisfação do ponto de vista do fim único da acção política. Convenhamos que é o fim merecido para uma tão eficiente gestão do risco e do cronograma do projecto...
Ao contrário da lógica empresarial, em que o objectivo último que norteia a actuação do gestor é a satisfação objectiva dos interesses do accionista, nestes meandros da trapaça política local a estratégia passa, apenas, pelas conveniências particulares do decisor, reservando-se para a satisfação do interesse público uma verificação ilusória ou, em momentos de rara fortuna, uma ocorrência que brota do acaso.
Se na circunstância paradigmática do Dr. Fernando Ruas, atendendo à sua formação de base, à sua longa experiência e, especialmente, tendo em conta a qualidade de representação dos municípios portugueses que exerce, se afastam, de forma óbvia, os argumentos de deficit de preparação ou da dimensão e qualidade da representatividade do regime autárquico, o que nos falta para pôr em causa, definitivamente e sem remorso, o maior tabu da democracia portuguesa e a sua desadequada resposta aos problemas da governação regional do século XXI? O que nos faltará para que manifestemos total indignação pela temerosa reforma administrativa que se está a implantar, assente no esteio duma solução caduca?

Fumeiro de Reco Perneta

Fumeiro de Reco Perneta DOP

Já deixei ficar aqui uma referência aos produtos alimentares transmontanos certificados (DOP), na óptica da sua suposta genuinidade e das garantias de conformidade com o receituário tradicional. Ficou explícita a minha oposição a um processo de certificação marcado pelo dogma da excelência, extensível à totalidade da produção agro-alimentar regional, que inspira uma atitude certificadora, voluntarista em vez de técnico-científica, aplicando critérios e limites fluidos e manipuláveis e produzindo, quando muito, uma garantia de proveniência.
Tudo se reconduz à desconfiança e oposição a um sistema conceptualizado, influenciado, aplicado, auditado, alterado ou revogado pelos directamente interessados, numa manobra de autocontrolo mistificadora e fraudulenta, ao serviço de interesses particulares, mercantis e políticos, que as autoridades tutelares promovem por acção ou omissão.
Contra este estado de coisas, cuja sobrevivência depende da ignorância e do apelo nostálgico ao regresso a um tempo e espaço lendários, estimulados no consumidor (e até no consumactor!) e explícitos na instrumentalização mediática, advogo um sistema credível de certificação: público, eminentemente técnico, externo – ao sector e à região! – e independente. Uma agência de controlo e garantia de qualidade, conformidade e segurança alimentar.
Vem isto a propósito da XIII Feira do Fumeiro de Montalegre que de 15 a 18 deste mês se reeditou nesta vila raiana. Acompanhei pela imprensa a apresentação do certame deste ano. Foram anunciados, com surpreendente rigor e detalhe, os números desta edição: 147 expositores, responsáveis pelo processamento de 978 porcos pernetas que redundaram em 675 presuntos, 8,3 toneladas de chouriças, 8,2 toneladas de alheiras e 2,6 toneladas de sangueiras.
Tive, ainda, notícia da existência de um sistema de controlo que, embora “parecendo um método arcaico (...) funciona muito bem”, palavra de vice-presidente da Câmara, Orlando Alves. E só pode ser verdadeira tal sentença, já que só uma estrutura tão omnipresente e omnisciente encontrará justificação para tal grau de mutilação suína. E só um conselho de sábios como o que aqui opera, rigoroso e minucioso, conceberá explicações para o facto de mais de 80 toneladas de carne — sem contar com pão, outras carnes, sangue, temperos e condimentos empregues no fabrico de alheiras e sangueiras — atingirem uma produção declarada que não ultrapassa um terço daquelas matérias-primas, bem como justificações para o que se perdeu ou não se declarou pelo caminho.
Da amplificação mediática de que beneficiou este “S. João das Chouriças” (presidente da CM Montalegre), dediquei atenção à cobertura da TSF, que dali transmitiu, em directo, uma entrevista com os protagonistas. Se deixarmos de lado as “confissões” relativas ao impacto na economia local deste fim-de-semana diferente — estimativa de um milhão de contos —, com pouca ou nenhuma relevância fiscal, como se depreende da resistência comprometida, mantida por um dos intervenientes quando se tratava de confirmar ou não tal cálculo, ainda assim pudemos confirmar: (i) o abate ilegal dos animais, justificado, desajeitadamente, pelo veterinário municipal, invocando tratar-se de uma operação “folclórica” destinada ao auto consumo da família em causa, apesar do número de animais envolvido o desmentir; (ii) o alheamento cúmplice, esperado e significativo, das autoridades, designadamente as sanitárias, refugiando-se, porventura, em expedientes como o desconhecimento oficial de tais realizações ou a falta de participação ou denúncia capazes de desencadear qualquer acção fiscalizadora; (iii) o número insignificante (inferior a 10% dos expositores) de participantes devidamente “institucionalizados”, com estatuto e alvará, denunciador do peso significativo dos clandestinos, que se mantém elevado ao fim de mais de uma década, sendo que só o presidente da direcção da Associação de Produtores, comercializa fumeiro montalegrense certificado; (4i) a dificuldade de compreender que, comercializando-se em cada ano a totalidade da produção, como em diversas passagens ficou assegurado e vivendo-se, no momento actual, a época das “matanças”, conforme testemunhou a reportagem daquela rádio, estejamos a assistir, em simultâneo, ao comércio do fumeiro, produto resultante de curas que se pretendem tão prolongadas. Ao invocar os santos populares para caracterizar a sua feira em tempo de janeiras, o senhor presidente da Câmara sublinhava, sem o desejar, tal extemporaneidade; (5i) a dúvida em relação à promoção e exploração de raças autóctones, como consta, invariavelmente, da propaganda, adensada pela declaração sincera, mas insólita, do senhor veterinário presente, confirmando a “extinção” do gado barrosão, em nome dum necessário pragmatismo; (6i) a subsidiação, pela câmara, deste sector de actividade privado, que se traduz, de qualquer ponto de vista, de uma controversa escolha em relação ou detrimento de outros; (7i) as contradições e confusões, umas em resultado de mera incongruência discursiva, outras deliberadas, ao serviço de fins últimos só alcançáveis através da capacidade de evitar e/ou contornar a lei: a confusão empregue nas diversas formulações de caracterização da actividade, ora pretendendo-se que se enquadre no mero artesanato de repercussão local — alusão ao folclore —, ora invocando a sua importância e viabilidade económicas para justificar crescentes investimentos em infra-estruturas — novo palácio de exposições — e promoção, com vista a alcançar o mercado das grandes superfícies, exibe a persistência numa conduta ilegítima. Depois de, reiteradamente, desrespeitarem as regras do licenciamento, estas organizações informais preparam-se para atacar um mercado de âmbito nacional que sabem estar-lhes vedado por limites de ordem geográfica e de quota de produção; (8i) a presença hegemónica da autarquia: é dela a iniciativa e a capacidade concretizadora, mas também as competências de fiscalização, de regulação política do mercado e preços e de planificação estratégica futura, apesar de o certame se encontrar em fase de velocidade de cruzeiro e de a iniciativa privada ter já dado sinais de alguma vitalidade através da sua Associação de Produtores e de outros empreendimentos autónomos que, sem os favores e/ou apesar destes, já levam o fumeiro do barroso ao país.
O que fica dito aplica-se a este caso barrosão, mas manterá actualidade por alturas da próxima Feira do Fumeiro de Vinhais, pioneira destas soluções imaginativas. O que se joga neste jogo de faz de conta em que se reinventa o estatuto autárquico, retorcendo-o para que a ele possa ser atribuída a responsabilidade de fomentar a actividade económica regulando-a por novas regras discricionárias, mais ou menos empíricas, sem direito a recurso ou apelo. Assim se enquadra a livre iniciativa e se desincentiva o perigoso e independente empreendedorismo; assim se estimula a ineficácia, o amadorismo e a dependência assistencial, essa grande causa do constrangimento democrático inerente ao municipalismo actual.
Mas se nada disto comove alguém, é hora de se ponderar outros efeitos destas acções “bem intencionadas” que escarram o ordenamento jurídico com conivências escandalosas. Caucionando, perante o mercado, a qualidade da produção de agentes “clandestinos”, atestam uma qualidade que faz vítimas. Desde logo e em primeiro lugar o consumidor forçado a pagar o preço da especulação autorizada (€ 40,00 / Kg de chouriças!). Seguem-se os promotores de iniciativas empresariais que desejam estabelecer-se no respeito pela legislação em vigor e segundo regras de racionalidade económica donde está arredada a concorrência desleal. Por fim é a própria economia regional que, mais ano menos ano, depois de esvaziada a bolha, poderá não se recuperar do trauma de mais expectativas frustradas.
Sob o pretexto de interpretar anseios e de lhes dar resposta, descobre-se uma inconfessada estratégia de aliciamento e traficância política que explica o controle férreo da festa. É preciso dar circo ao povo!
Já vivemos, por cá, tempos de grandes visionários incompreendidos que nos indicaram o caminho que não soubemos seguir. Um dos maiores foi Camilo de Mendonça. Na esteira dos estilhaços a que conduziram o seu avançado legado, multiplicam-se estes profetas menores dum futuro sempre adiado, seguidos por uma legião de arrogantes e oportunistas seguidores desgraçados.
Assim se vai (trans)Montalegremente!