TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

26 agosto 2003

Afericoes 1

Aferições

Extraio de A Espuma dos Dias impressões fixadas no "diário de bordo" de umas férias transmontanas:
"Em Vidago sonhei com jorros de água erectos, jactos cálidos, nudez, remineralização, poçães anti-oxidantes feitas de água, embriaguez translúcida.
Em Vidago jantei e pedi água. Julgando que era clara e translúcida a minha sede de água de Trás-os-Montes. Venderam-me Aquarel, a água da Nestlé. Perguntei porquê. Responderam-me que precisavam de me vender água da Nestlé. Que também a Campilho é Nestlé. Que também a Nestlé é um cliente. Enfim, que outros interesses se erguiam. Disse que näo o censurava, ao senhor do restaurante O Resineiro. Não disse a verdade. Censuro-o.
Levei comigo a garrafa de litro e meio de Nestlé. Está na mala do carro. Para verter dentro do depósito do limpa-vidros do carro do meu amor.
Em Montalegre, o meu amor pediu umas tapas. Serviram-lhe presunto serrano com queijo de plástico.
"

Ao Aviz de Trás-os-Montes "roubo" transcrição da sua coluna do leitor:
"Também acho que a província, ou o Portugal profundo, não é o mundo das maravilhas de que se fala de vez em quando, pelo contrário, é o lugar onde se reúnem todos os defeitos dos portugueses, com especial importância quando vivem muito próximos e são muito conhecidos um dos outros. […] Um dos problemas crónicos é a ignorância em muitos sectores, desde os opinion makers até ao cidadão comum que não lê nem se interessa muito por aquilo que desconhece."

Pela Tempestade Cerebral fiquei a conhecer o pensamento e a pesquisa do Jaquinzinhos:
"O populismo de todos os partidos que apadrinham cada terrinha com aspirações a urbe maior, temperado com a promessa de novos cargos autárquicos e regado com muitos pequenos orgulhos locais faz destas. Um país cada vez mais retalhado."
"Cada vez será maior o montante dos impostos transferidos para as autarquias e que serão cada vez mais desperdiçados em novas e desnecessárias estruturas."
"Com menos de uma dezena de milhar de habitantes, temos (...), só no continente (...), 90 concelhinhos. 90 senhores presidentes, 400 senhores vereadores, 500 secretárias, centenas de directores de serviços, 90 serviços de contabilidade autárquica, 90 serviços de fiscalização, 90 planeamentos, 90 departamentos disto, 90 departamentos daquilo, centenas de fiscais municipais, centenas de regulamentos, de posturas, de editais, 90 serviços municipalizados, 90 abastecimentos de águas e de saneamento, um sem fim de organizaçõezinhas inviáveis. O desperdício levado ao grau mais alto."

As experiências alheias, mormente as daqueles que nos dissecam a partir da sua condição livre de estrangeiros, calibram-nos o pensamento analítico e especulativo. A partir destas, concluo que não carreguei demasiado nas tintas.
Impossível menosprezar a lucidez destes testemunhos. Na blogosfera faz-se muito pelo amanhã de Portugal, mas a voz autorizada da imprensa institucional faria ainda mais se deixasse de nos tratar na coluna das curiosidades e se associasse na amplificação destas vozes.

Nota:
Ultimamente, em plena época de férias, tenho recebido solicitações para aconselhamento turístico na preparação de itinerários por terras transmontanas. Peço desculpa pelo silêncio inicial que cultivo. É metodológico e estratégico. Ao jeito da recusa em antecipar a narrativa cinematográfica a quem no-la solicita na véspera da sessão programada; ao estilo da desnecessária e inútil descrição da qualidade estética e do íntimo deleite requerida por quem nos sucede na visita a um museu.
Num segundo momento, depois de cada qual imprimir na sua alma as imagens da conquista, segue uma proposta, que já não condiciona a experiência inicial (ou iniciática?), e possibilita posteriores aferições.