TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

20 agosto 2003

Empresas Municipalizadas

Empresas Municipalizadas

Retiro da imprensa diária, fonte de inspiração e documentação frequente para as minhas reflexões, notícia acerca de duas sociedades anónimas que designo por "municipalizadas" em virtude de a posição de controlo pertencer aos municípios em que estão sediadas.
A "Quintas de Melgaço, Agricultura e Turismo, SA", tecnicamente falida e em que a câmara local detém 68% do capital, estando o restante disperso por mais de quatro centenas de pequenos produtores, vive momentos conturbados (casa onde não há pão...), de conflito entre o accionista maioritário e os minoritários. Estes, tementes ao estipulado pelo Código das Sociedades Comerciais no que toca a capitais próprios muito inferiores ao capital social, substituíram-se à contrariada administração "camarária" e convocaram uma assembleia geral com a finalidade de sanear, financeiramente, a empresa por via da aprovação de uma operação "harmónio", de redução para absorção de prejuízos, seguida de aumento do capital social, exigindo do accionista de referência entrada proporcional ao capital detido. O sócio maioritário, escudando-se no bloqueio ao endividamento vivido (abençoado bloqueio! Os modos enlutados e revoltados empregues por estes regedores incompreendidos - coitados! - para diabolizar a proibição do recurso ao crédito e quem tomou tal medida de disciplina financeira e, a partir desta realidade, a consequente justificação para se eximirem, automaticamente, a responsabilidades pelos depauperados capitais próprios, dão a sua real dimensão de gestores, para quem o recurso à dívida é a normal solução para qualquer "buraco", certos e seguros - até quando? - de que o destino do município não será idêntico ao das tais empresas municipalizadas), não se compromete com a parte do aumento a subscrever. Para além disto, o representante dos pequenos produtores e accionistas confronta a outra parte com acusações da seguinte gravidade: os dois administradores nomeados pela autarquia "não se empenham" e o conselho de administração é liderado por um presidente, vice-presidente da câmara, ausente; requerem a retirada de alguns dos nove trabalhadores "que estão a mais" (alguém me poderá explicar a verdadeira extensão da realidade aqui implícita?), parte de uma medida de gestão mais vasta que visa "acabar com hábitos internos que aumentam despesas correntes".
Entretanto, a assembleia geral já se realizou e deliberou promover a operação de alteração do capital prevista. Esta decisão foi tomada com os votos da autarquia, enquanto os sócios minoritários presentes abandonavam a sala, queixando-se da falta de diálogo, desconhecendo o valor da tomada de capital a assumir pela câmara e reclamando um milhão de euros de pagamentos atrasados aos sócios viticultores.
Os trabalhadores do metro de superfície de Mirandela estão de greve, protestando contra as condições de trabalho.
Esta sociedade anónima, detida pela câmara mirandelense, nasceu da ambição pessoal do malogrado Presidente José Gama que, à força de se fazer notar no meio político nacional, nem que fora à custa de decisões estapafúrdias como esta, contratualizou com a CP esta farsa de serviço público a troco de leonina garantia de capacidade construtiva dos dois lados da via férrea. Este projecto foi, desde o início da sua exploração comercial, um rotundo fracasso. Sem passageiros e com um déficit mensal permanente, a Metropolitano de Superfície negociou, há cerca de um ano, com a empresa pública de caminhos de ferro, a extensão da exploração até ao Tua, num percurso que a CP ameaçara, diversas vezes, abandonar por falta de viabilidade económica.
Em resposta às reclamações dos trabalhadores, o presidente da sociedade do metropolitano, que acumula com a presidência da câmara, transporta para momento posterior a solução do problema, numa altura em que a sociedade ceda lugar a outra que acolherá, no seu capital, as autarquias servidas por aquele ramal ferroviário: Carrazeda de Ansiães, Vila Flor e Alijó. Obviamente que o que está em causa é a partilha do prejuízo.
Eis dois exemplos que reforçam a minha convicção que se trata de grave erro a aventura empresarial das autarquias. Conceder às câmaras municipais a capacidade de intervirem no mundo empresarial, através da criação e/ou exploração de sociedades comerciais, é, antes de mais, legitimar uma promiscuidade tão censurável e contranatura como permitir aos tribunais a gestão de empresas de comunicação social (que jeito daria no momento actual!) ou condescender com a exploração, pelas polícias, do negócio da segurança privada. Em todos estes casos, os objectos sociais patentes no exercício daquelas actividades comerciais corrompem os fins para que foram criadas as instituições públicas referidas, desvirtuam o mercado, viciando as regras da justa concorrência e, regra geral, acabam em desastre económico, com o seu rol de vítimas e o desperdício de dinheiros públicos, por incompatibilidade de matrizes fundacionais e por incompetência dos agentes (comissários políticos) envolvidos.
Por vezes, estas aventuras traduzem a concretização um impulso mimético de ascensão à categoria de empresário, nem que seja arriscando dinheiro alheio. Frequentemente, trata-se de um sórdido e paternalista desejo de controlo ou tutela de toda e qualquer expressão da sociedade civil, sob a capa de um premente imperativo assistencialista, ao serviço de uma lógica de sustentação no poder pela exploração de contrapartidas a partir de uma teia de dependências. E assim se explica o inusitado e paradoxal apego por esta dimensão, até há pouco tempo exclusivamente privatística, da actividade económica - sociedades comerciais em geral e anónimas desportivas - que decorre em simultâneo com a cessão de competências próprias - e exclusivas até há poucos anos - a sociedades privadas, nos domínios da recolha e gestão de resíduos sólidos urbanos e do abastecimento de água.