TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

06 agosto 2003

Producao Agro-alimentar Transmontana

Produção Agro-alimentar Transmontana: o derrube dos mitos

A propósito do I Congresso Ibérico do Azeite, que decorreu em Vila Flor no passado mês de Julho, resolvi partilhar uma reflexão amadurecida há já certo tempo e que este congresso enriqueceu de argumentos.
Calculo que tenha dez anos a formalização conceptual da ancestral efabulação da imaculada qualidade dos produtos agrícolas e agro-industriais transmontanos, apresentados como lídimos descendentes do celestial maná, alimento do povo eleito do qual, por feliz e sensacional investigação genealógica recente, se concluiu descendermos.
A sistematização do conhecimento, da prática, do saber-fazer agro-alimentar transmontano teve a sua sede na DRATM, cujos técnicos, afanosamente, conduziram o processo de fixação do elenco das raridades e desaparecidas especialidades, misturadas com preciosas criações de falso pedigree, à laia de Grande Código de Preservação da Genuinidade. No seu afã de tudo catalogarem, conseguiram averbar um recorde de registos de produtos de denominação de origem protegida no almanaque europeu deste património e, provavelmente, no Guiness Book (a amplitude da "registite" aguda vai dos clássicos, como a carne mirandesa ou a azeitona negrinha de Freixo, às fraudes intelectuais, como sejam a criação ex nihilo do queijo de Trás-os-Montes, perdão, terrincho ou o fumeiro de Vinhais, assente no milagre genético da ressurreição de uma raça autóctone de porco, o bísaro ou bizarro, como gosto de designá-lo, por força do seu regresso do Além e por assunção da corruptela, permitida pela liberdade de criação literária que me outorgo. Nunca Trás-os-Montes teve um queijo emblemático, como as Beiras têm, por exemplo; logo a protecção administrativa para produtos com tradição, mas em risco, objectivo primeiro do sistema de certificação, está, neste caso, prostituída. Quanto ao fumeiro bísaro, para além da sua origem "lendária", nunca suficientemente documentada, sofreu um tal boom, promovido em feiras fora-da-lei-mas-dentro-do-nacional-porreirismo-das-autoridades-sanitárias, que, nem que toda a linhagem bísara, desde Abraão, fosse convocada, por celestiais cornetas, a um segundo sacrifício, não se armazenaria stock suficiente de matéria-prima). Depois, propalou-se a ideia de que a certificação era panaceia e garantia de mercado e de escoamento das produções. Chegou mesmo a atestar-se que a procura era de tal maneira elástica que absorveria qualquer preço. Hoje em dia, nada releva o facto de estudos oriundos da UTAD provarem a ineficácia comercial e o nulo impacto socio-económico local da iniciativa, atendendo à deficiente estratégia de comercialização e à nula expressão económica da maior parte das denominações registadas.
Ao contrário do que se passa por cá, na vizinha Galiza, já em 1996, quando visitava uma feira de produtos de agricultura biológica (Ourense) e denominações de origem protegidas, registei diferenças significativas. Enquanto nos entretínhamos a rechear o cabaz com mel de Montesinho, da Terra Quente mais o do Marão, com a couve penca da Vilariça, da veiga Chaves e a sua irmã tronchuda de Mirandela, por lá protegia-se o mel da Galiza, a batata da Galiza, ... da Galiza. Ou seja, enquanto por cá se investia em classificar as miudezas bizantinas diferenciadoras de produtos do mesmo género e espécie, num exercício etno-cultural, digno espólio de museu, por lá imperava a simplificação de processos e a abrangência de critérios de classificação e padronização ao serviço de uma estratégia comercial de valorização económica da actividade agrícola. Só esta racionalização e gestão criteriosa de meios e objectivos potencia sinergias, ganhos de escala e competitividade suficientes para cumprir as exigências colocadas pela distribuição moderna e aproveitar os benefícios dessa cooperação: aceder a mercado alargado, exigente e dinâmico. Esta sintonia com o mercado, óbvia em Espanha, como vimos e como prova a vitalidade do seu sector agrícola e agro-industrial, é uma urgência enfatizada, uma vez mais, pelo mais recente relatório Porter para o cluster dos vinhos. Refere ele a necessidade de criação de um vinho de Portugal, síntese das mais representativas castas das várias regiões vinícolas nacionais, como forma de beneficiar da fácil identificação e desejável fidelização do consumidor internacional. De conceito semelhante anda a beneficiar, há muito, o vinho Mateus, mas, conhecendo nós os comentários jocosos que por cá lhe dedicam e a tradicional resistência à cooperação e partilha em favor das rivalidades de confraria, somos levados a advinhar um interminável caminho até esse desiderato ou o arquivamento do último Porter na Torre do Tombo.
Estes nossos tutores são responsáveis, ironia à parte, por perpetuar a ilusão de que os produtos agro-alimentares nordestinos são "os melhores do mundo": a melhor castanha, a melhor cereja, o melhor azeite ... globais! Avaliando a renda de miséria disponível da nossa lavoura, conclui-se que não retiramos desta bazófia qualquer benefício compatível com o alegado estatuto de superioridade pacóvio, com o prazenteiro autoconvencimento provinciano. Mas que importância tem tal facto para a mentalidade de aristocrata falido, vivendo, nostálgico, de recordações, esse tipo social que tão bem nos define nos dias de hoje? Mas este é um dos principais fundamentos do nosso atraso: vangloriamo-nos com a estridente proclamação de suposta excelência, mas, ou não cuidamos de aferi-la em confronto com a qualidade alheia ou, nos casos em que tal ponderação tem lugar, acabamos afogados na vergonha de ter de reconhecer incapacidade própria.
E não resolve, antes agrava porque adia o grande momento de catarse da alma colectiva, silenciar os maus resultados alcançados, por exemplo, pelos nossos mais representativos azeites, avaliados em provas cegas organizadas por publicações de epicuristas gourmets; ou assobiar para o lado quando confrontados com a contundente classificação de má qualidade, atribuída aos mesmos, pronunciada por renomada personalidade do meio académico, em pleno congresso do sector recentemente levado a efeito em Vila Flor (1). Aliás, nesse evento teve lugar um concurso da aurífica gordura em que certos consagrados não obtiveram mais que um diploma de participação, tendo ganho, em toda a linha, uma casa de fundação recente, mas auspiciosa, que vem desenvolvendo trabalho sério, profissional e pioneiro, aplicando know-how e tecnologia italianos. Esta origem estrangeira, que faz a diferença, será, meramente, circunstancial e despicienda ou será, antes, oportuna, visionária, decisiva e esclarecedora acerca do percurso e das escolhas a seguir, nesta com em outras produções?
O drama da nossa agricultura, para além das pirraças várias colocadas pela mãe natureza, quase sempre avara, mas nem sempre vencedora dos desafios que, permanentemente, coloca ao homem transmontano, encontra-se na falta de vocação comercial evidenciada pela sua tutela intelectual, planificadora e técnica. Medida audaz seria, para além da inclusão do sector primário na pasta da economia, com os ganhos inerentes de racionalidade e eficácia, projectar a alteração estatutária deste jugo da hipotecada, subjugada, envelhecida e adiada agricultura do nordeste, mantendo a natureza pública, mas adquirindo características societárias de direito privado, um pouco à imagem da intervenção do Ministério da Saúde no sector dos hospitais. A medida seguinte deveria visar a aquisição, para o novo organismo, de competências no âmbito do marketing e comercial, em prejuízo da excedentária valência técnica e tecnico-administrativa. Necessitamos auscultar o mercado e mais precisamos de quem tenha discernimento e força para impor, mais que a satisfação das necessidades e caprichos do consumidor actual, a antecipação das tendências da procura futura.
Mas como aspirar a tanto, quando a ortodoxia oficial denota tantos equívocos de planificação e orientação estratégica? Podia, mas não estou, agora, a convocá-las, invocar as contradições de quem ora aconselha o plantio, ora o arranque de vinha, cerejeiras ou oliveiras, não necessariamente por esta ordem. Mas quero mencionar e desmontar a doutrina incontestada que nos reserva uma vocação, no domínio da economia agrícola, para a pequena produção de qualidade, num desafio à satisfação de nichos de mercado. Esta política, desenvolvida pela intelectualidade regional, a fazer escola ao nível central e patente numa entrevista, nunca desmentida ou renegada, que li há já certo tempo, atribuída a um dos três ou quatro últimos directores regionais, não tem em conta, obviamente, o esforço, assim atraiçoado, de viabilizar o emparcelamento. E quem assim fala não há-de ter em mente as produções, também apreciáveis em termos quantitativos, de batata da região noroeste da província, a produção silvícola, de vinho e azeite laborados pelas respectivas cooperativas de produção, a produção de maçã de Carrazeda de Ansiães, a de cogumelos de Vila Flor e mais dois ou três exemplos, de negação da tese oficial, que se poderiam acrescentar e entre os quais avultam a capacidade hortícola, ainda não concentrada, dos vários vales e veigas da nossa terra e, sobretudo, a produção de vinho do Porto e sua presença mundial. Tudo expressões da capacidade agrícola com relevância no abastecimento do mercado interno e, nalguns casos, até do externo, apesar de tudo. Do ponto de vista do desenvolvimento agrícola, que se almeja para esta região, que serventia tem a referida nomenclatura ignorante? A resposta encontra-se algures, por entre indicadores de rendimento e bem-estar da comunidade rural, se esvaziados do impacto da subsidiocracia instalada ou vislumbrar-se-à no dinamismo conseguido no recrutamento de jovens agricultores.
Esta corrente de pensamento hegemónico labora em construções mentais mistificadoras que impõem um "small is beautifull" à nossa moda, defendendo uma economia agrícola na base da pequena produção, originária da miríade de pequenas unidades de transformação disseminadas por toda a parte (queijarias, cozinhas regionais, indústrias artesanais de compotas, etc.), da qual se apura uma constelação obscura e bizarra de especialidades, denominações protegidas e variações sobre um mesmo tema que não poderão ter expressão económica, desde logo pela impossibilidade da sua completa apreensão, na sua imensa e improvável diversidade, pelo mercado, bem assim por carecerem, por definição, de massa crítica mínima. Tudo isto na tentativa de esconjurar o modelo de concentração da produção experimentado, com sucesso inicial, pelo emblemático Complexo Agro-Industrial do Cachão. Não aprenderam nada! Avaliam a experiência pelo seu traumático final, sem cuidarem de ponderar razões exógenas decisivas, das quais emerge, como das mais ponderosas, a intervenção estatal pós-revolucionária.
Esta influência manipuladora evade-se do círculo restrito dos gabinetes e expande-se ao ritmo alucinante da universal distribuição assistencialista do rendimento máximo garantido. "Quem dá pão, dá criação!", diz-se por cá. No caso vertente, mão que dá subsídio alcança total supremacia e influência. Pode dizer-se, com propriedade, que a lavoura transmontana actual é uma actividade económica conduzida a partir da DRATM, de quem o agricultores são meros agentes executantes, cabendo-lhe o monopólio do risco. E, ao contrário do consultor convencional, cuja actividade decorre da proposta de reformulação de métodos e processos ao reposicionamento do negócio, respeitando o núcleo inviolável da liberdade de decisão do cliente, aquela elite visa moldar a actividade às suas opções ideológicas, força as decisões com base na especial relação de poder instituída e não parece solidarizar-se com o destino já desvendado e daí extrair consequências institucionais. Decorre daqui o facto dramático de a ideologia confundir os desejos da sua própria despensa, com as necessidades da agricultura nordestina; troca as prioridades desta, enquanto actividade empresarial visando eficiência e resultados, pelos seus caprichos de gourmet.
Pode, pois, dizer-se que a dinâmica daquela instituição gerou, vamos corrigir contrariados, inspirou, numa base de cumplicidades e afinidades pessoais e corporativas e discriminações territoriais oportunísticas, a maioria das associações interprofissionais e agrupamentos de produtores, entidades certificadoras, confrarias de gastrónomos e, por via destas, já influencia o sector da restauração e hotelaria, numa tentativa de antecipação e esvaziamento de manifestações similares que brotassem, espontânea e livremente, da sociedade civil. Na hora do juízo - porque a haverá - na era pós-subsídios de todas as distorções, no momento de aferição do impacto de tal protagonismo no tecido socio-económico regional, é desejável que as cadeiras reservadas aos responsáveis não fiquem vagas.

Conclusão
Impõe-se a morte dos mitos que formatam a imagem distorcida que outrém constrói de nós e que nós já não podemos honrar, por um lado ou da qual necessitamos livrar-nos, em muitos outros casos. Temos de assegurar que aqueles primores de que o leitor se habituou a ouvir falar já não existem ou escasseiam de tal maneira que só alguns residentes permanentes ainda conhecem. Temos de provar que não é sobre estes que tem de assentar uma economia agrícola competitiva. Precisamos de comunicar que o que para aí tem disponível são réplicas, na generalidade dos casos muito deficientes, apresentadas de forma enganosa, resultado do desenvolvimento de uma estratégia errada. Temos de apregoar que a circunstância de os odoríficos e suculentos pêssegos da Vilariça provirem de árvores californianas, de o espantoso azeite de Almendra (Foz Côa) ter cuore italiano e de o vinho do Douro ter subido do inferno ao paraíso em menos de duas décadas, de vinho de pasto ao aplauso unânime que hoje recolhe, fruto de know-how e tecnologia de ponta, americana, francesa ou australiana, sorvidos por novas castas de enólogos, esta circunstância, dizia, não se reduz a um handicap que se deva ocultar, mas é antes uma vantagem competitiva a explorar, a imitar e a estender a outras produções, base sobre a qual repousa, adormecido, o futuro da agricultura transmontana.

(1) "Metade do azeite produzido em Portugal não tem qualidade... só é bom para ser refinado", José Gouveia, Instituto Superior de Agronomia. Logo, o transmontano...