TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

21 janeiro 2004

Fumeiro de Reco Perneta

Fumeiro de Reco Perneta DOP

Já deixei ficar aqui uma referência aos produtos alimentares transmontanos certificados (DOP), na óptica da sua suposta genuinidade e das garantias de conformidade com o receituário tradicional. Ficou explícita a minha oposição a um processo de certificação marcado pelo dogma da excelência, extensível à totalidade da produção agro-alimentar regional, que inspira uma atitude certificadora, voluntarista em vez de técnico-científica, aplicando critérios e limites fluidos e manipuláveis e produzindo, quando muito, uma garantia de proveniência.
Tudo se reconduz à desconfiança e oposição a um sistema conceptualizado, influenciado, aplicado, auditado, alterado ou revogado pelos directamente interessados, numa manobra de autocontrolo mistificadora e fraudulenta, ao serviço de interesses particulares, mercantis e políticos, que as autoridades tutelares promovem por acção ou omissão.
Contra este estado de coisas, cuja sobrevivência depende da ignorância e do apelo nostálgico ao regresso a um tempo e espaço lendários, estimulados no consumidor (e até no consumactor!) e explícitos na instrumentalização mediática, advogo um sistema credível de certificação: público, eminentemente técnico, externo – ao sector e à região! – e independente. Uma agência de controlo e garantia de qualidade, conformidade e segurança alimentar.
Vem isto a propósito da XIII Feira do Fumeiro de Montalegre que de 15 a 18 deste mês se reeditou nesta vila raiana. Acompanhei pela imprensa a apresentação do certame deste ano. Foram anunciados, com surpreendente rigor e detalhe, os números desta edição: 147 expositores, responsáveis pelo processamento de 978 porcos pernetas que redundaram em 675 presuntos, 8,3 toneladas de chouriças, 8,2 toneladas de alheiras e 2,6 toneladas de sangueiras.
Tive, ainda, notícia da existência de um sistema de controlo que, embora “parecendo um método arcaico (...) funciona muito bem”, palavra de vice-presidente da Câmara, Orlando Alves. E só pode ser verdadeira tal sentença, já que só uma estrutura tão omnipresente e omnisciente encontrará justificação para tal grau de mutilação suína. E só um conselho de sábios como o que aqui opera, rigoroso e minucioso, conceberá explicações para o facto de mais de 80 toneladas de carne — sem contar com pão, outras carnes, sangue, temperos e condimentos empregues no fabrico de alheiras e sangueiras — atingirem uma produção declarada que não ultrapassa um terço daquelas matérias-primas, bem como justificações para o que se perdeu ou não se declarou pelo caminho.
Da amplificação mediática de que beneficiou este “S. João das Chouriças” (presidente da CM Montalegre), dediquei atenção à cobertura da TSF, que dali transmitiu, em directo, uma entrevista com os protagonistas. Se deixarmos de lado as “confissões” relativas ao impacto na economia local deste fim-de-semana diferente — estimativa de um milhão de contos —, com pouca ou nenhuma relevância fiscal, como se depreende da resistência comprometida, mantida por um dos intervenientes quando se tratava de confirmar ou não tal cálculo, ainda assim pudemos confirmar: (i) o abate ilegal dos animais, justificado, desajeitadamente, pelo veterinário municipal, invocando tratar-se de uma operação “folclórica” destinada ao auto consumo da família em causa, apesar do número de animais envolvido o desmentir; (ii) o alheamento cúmplice, esperado e significativo, das autoridades, designadamente as sanitárias, refugiando-se, porventura, em expedientes como o desconhecimento oficial de tais realizações ou a falta de participação ou denúncia capazes de desencadear qualquer acção fiscalizadora; (iii) o número insignificante (inferior a 10% dos expositores) de participantes devidamente “institucionalizados”, com estatuto e alvará, denunciador do peso significativo dos clandestinos, que se mantém elevado ao fim de mais de uma década, sendo que só o presidente da direcção da Associação de Produtores, comercializa fumeiro montalegrense certificado; (4i) a dificuldade de compreender que, comercializando-se em cada ano a totalidade da produção, como em diversas passagens ficou assegurado e vivendo-se, no momento actual, a época das “matanças”, conforme testemunhou a reportagem daquela rádio, estejamos a assistir, em simultâneo, ao comércio do fumeiro, produto resultante de curas que se pretendem tão prolongadas. Ao invocar os santos populares para caracterizar a sua feira em tempo de janeiras, o senhor presidente da Câmara sublinhava, sem o desejar, tal extemporaneidade; (5i) a dúvida em relação à promoção e exploração de raças autóctones, como consta, invariavelmente, da propaganda, adensada pela declaração sincera, mas insólita, do senhor veterinário presente, confirmando a “extinção” do gado barrosão, em nome dum necessário pragmatismo; (6i) a subsidiação, pela câmara, deste sector de actividade privado, que se traduz, de qualquer ponto de vista, de uma controversa escolha em relação ou detrimento de outros; (7i) as contradições e confusões, umas em resultado de mera incongruência discursiva, outras deliberadas, ao serviço de fins últimos só alcançáveis através da capacidade de evitar e/ou contornar a lei: a confusão empregue nas diversas formulações de caracterização da actividade, ora pretendendo-se que se enquadre no mero artesanato de repercussão local — alusão ao folclore —, ora invocando a sua importância e viabilidade económicas para justificar crescentes investimentos em infra-estruturas — novo palácio de exposições — e promoção, com vista a alcançar o mercado das grandes superfícies, exibe a persistência numa conduta ilegítima. Depois de, reiteradamente, desrespeitarem as regras do licenciamento, estas organizações informais preparam-se para atacar um mercado de âmbito nacional que sabem estar-lhes vedado por limites de ordem geográfica e de quota de produção; (8i) a presença hegemónica da autarquia: é dela a iniciativa e a capacidade concretizadora, mas também as competências de fiscalização, de regulação política do mercado e preços e de planificação estratégica futura, apesar de o certame se encontrar em fase de velocidade de cruzeiro e de a iniciativa privada ter já dado sinais de alguma vitalidade através da sua Associação de Produtores e de outros empreendimentos autónomos que, sem os favores e/ou apesar destes, já levam o fumeiro do barroso ao país.
O que fica dito aplica-se a este caso barrosão, mas manterá actualidade por alturas da próxima Feira do Fumeiro de Vinhais, pioneira destas soluções imaginativas. O que se joga neste jogo de faz de conta em que se reinventa o estatuto autárquico, retorcendo-o para que a ele possa ser atribuída a responsabilidade de fomentar a actividade económica regulando-a por novas regras discricionárias, mais ou menos empíricas, sem direito a recurso ou apelo. Assim se enquadra a livre iniciativa e se desincentiva o perigoso e independente empreendedorismo; assim se estimula a ineficácia, o amadorismo e a dependência assistencial, essa grande causa do constrangimento democrático inerente ao municipalismo actual.
Mas se nada disto comove alguém, é hora de se ponderar outros efeitos destas acções “bem intencionadas” que escarram o ordenamento jurídico com conivências escandalosas. Caucionando, perante o mercado, a qualidade da produção de agentes “clandestinos”, atestam uma qualidade que faz vítimas. Desde logo e em primeiro lugar o consumidor forçado a pagar o preço da especulação autorizada (€ 40,00 / Kg de chouriças!). Seguem-se os promotores de iniciativas empresariais que desejam estabelecer-se no respeito pela legislação em vigor e segundo regras de racionalidade económica donde está arredada a concorrência desleal. Por fim é a própria economia regional que, mais ano menos ano, depois de esvaziada a bolha, poderá não se recuperar do trauma de mais expectativas frustradas.
Sob o pretexto de interpretar anseios e de lhes dar resposta, descobre-se uma inconfessada estratégia de aliciamento e traficância política que explica o controle férreo da festa. É preciso dar circo ao povo!
Já vivemos, por cá, tempos de grandes visionários incompreendidos que nos indicaram o caminho que não soubemos seguir. Um dos maiores foi Camilo de Mendonça. Na esteira dos estilhaços a que conduziram o seu avançado legado, multiplicam-se estes profetas menores dum futuro sempre adiado, seguidos por uma legião de arrogantes e oportunistas seguidores desgraçados.
Assim se vai (trans)Montalegremente!