TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

28 janeiro 2004

Poço de virtudes

Poço de virtudes

Ultimamente, Viseu perpassa por este exercício de peneira do tempo que escorre como alfobre de case studies da governação municipal. Hoje trago mais um edificante contributo para a remissão do poder autárquico diante dos seus eleitores, para o prestígio daquele como instrumento de satisfação de necessidades e anseios das populações, face a outros mais “desadequados” por força do seu afastamento geográfico, para a inauguração de um novo cânone de moralidade assente no tão distinguido pragmatismo e para uma visão da comunicação social como vanguarda vigilante e esclarecida do desenvolvimento social e civilizacional.
A notícia de que parto, versando matéria futebolística de uma liga secundária — concretamente, o Académico de Viseu (AV), a sua muito problemática situação financeira e a “cura” prometida por uma milagreira sociedade anónima desportiva (SAD) — começou por me interessar em virtude destes “condimentos” estarem, muito frequentemente, ligados a um qualquer “cozinhado” envolvendo o município da terra. Foi o que se confirmou nos últimos parágrafos da crónica do Público.
Ficámos a saber que o Académico de Viseu, como todos os restantes clubes concelhios, beneficia de um subsídio mensal atribuído pela Câmara, numa interpretação autêntica, genuína que não original, do estatuto do poder autárquico, que boas razões terá para justificar esta discriminação positiva dos futebóis.
Atendendo à condição financeira precária, o AV, accionista maioritário da SAD, é vítima de guerras fratricidas que as disputas de protagonismo não cessam de congeminar. E é por esta razão que as câmaras sentem necessidade de “monitorizar” tais convulsões e mantê-las dentro de margens de segurança aceitáveis e favoráveis à estratégia camarária. A fórmula aplicada ao caso concreto pelo presidente Ruas consubstanciou-se no “congelamento” oportuno das transferências.
O AV foi accionado judicialmente por um ex-atleta e forçado a pagar a este cerca de 150 mil euros. A edilidade, conhecedora da obrigatoriedade do endosso ao tribunal de todas as receitas a apurar, está a reter aquelas prestações, não sem que prometa desbloqueá-las logo que a agremiação resolva o problema.
Em conclusão: (i) com a decisão tomada, CM de Viseu condiciona, de forma ilegítima, as opções correntes do AV, a quem fomentou expectativas ora suspensas; (ii) o município viseense não ignora a força vinculatória da decisão judicial, mas contorna-a habilidosamente — de conluio com os responsáveis do clube? — em vez de colaborar na execução de uma decisão cuja bondade técnica e material ninguém pôs em causa; (iii) a associação, pouco virtuosa, entre clube autarquia, conjugando esforços e cumplicidades para garantir o incumprimento de obrigações contratuais (na observância estrita, aliás, do objecto para que foram instituídos, não é verdade?), revela-se uma afronta ao tribunal e redunda numa ofensa aos direitos de uma vítima lesada duplamente; (4i) conhecedor de todas estas manobras, as autoridades judiciárias nada fazem e tudo permitem, como geralmente acontece sempre que futebol e política dão as mãos; (5i) a comunicação social não pode assistir a tudo e de tudo fazer relato neutro e isento, apenas. É pouco. Dar a conhecer situações destas e permitir à opinião pública o seu debate e censura em off é importante, mas esse dever de informar pode ser complementado com a abertura de espaço de análise, opinião e julgamento técnico-jurídico e político em on. O empenhamento tem de ir para além do mexerico com elevação e empenhamento.