TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

16 março 2004

Época de Exames 1

Época de Exames #1

Aspectos da política educativa

Há duas semanas atrás, assistimos a mais uma polémica com chancela genuinamente portuguesa: assunto mais ou menos consensual — prosaico até, de acordo com a hierarquia de prioridades de qualquer projecto de edifício educativo orientado para a transformação social pela via do conhecimento — gera, por cá, violenta urticária dogmática e encarniçados engalfinhamentos políticos ao sabor de interesses partidários, mas que, de tão estéreis, logo se lhes fina a virulência mal passada que esteja uma semana.
A reintrodução dos exames por alturas da mudança de ciclo, como método de aferição de conhecimentos e de competências dos estudantes, momentos de verdade e prova, segundo designações diversas, como outros com que se debaterão, frequentemente, vida fora, motivou frontal oposição da CONFAP, sigla que, no caso vertente, se moldaria com propriedade à salvaguarda dos interesses de uma confederação de Associações de Professores ou dos de uma outra cúpula de associações de Agrupamentos Partidários em lugar da independente e autêntica Confederação das Associações de Pais (quantas instituições não são mais que extensões ou “órgãos desconcentrados” da nomenklatura partidária disfarçados de emanações, genuínas e independentes, da sociedade civil...).
Partilho os ideais de curricula “abertos” contemplando uma considerável liberdade de formatação concedida ao professor e por este exercida de forma responsável e de acordo com especificidades de natureza geográfica, sociocultural e de interacção comunitária como resposta a solicitações concretas a requerer respostas adequadas. Mas não compreendo a alegada incompatibilidade insanável desta gestão “criativa” do processo educativo com o rigor e exigência de um sistema de avaliação, de garantia e certificação da conformidade daquela com os objectivos superiores e prevalecentes da política educativa geral. O objectivo do investimento educativo não há-de servir, apenas, o ideal romântico da contemplação estática, com deleite e encantamento, diante de uma formulação conceptual de um sistema educativo “progressista”, ideologicamente empenhado e moldado, mas deve antes centrar-se nos resultados produzidos nos alvos da intervenção educativa, nos “ganhos de produtividade” acrescentados à dinâmica social e civilizacional.
Apesar de todo o destaque que lhe adveio da acesa controvérsia, os exames não têm mais dignidade para além da relevância instrumental aludida; muito menos o merecimento bastante para disputarem assim o núcleo restrito das medidas estruturantes que uma agenda ministerial, que não se queira imprudente, superficial, vácua ou timorata, deve ordenar. Foi, precisamente, num enviesar, não provocado, da acção política responsável e competente que se transformou a intervenção ministerial, em mais uma inabilidade táctica proverbial.
Choca-me uma inversão de prioridades — de que o “folclore” dos concursos de professores é outro exemplo — vinda de quem tanto prometeu no campo da coerência reformadora do sistema educativo. Diante de bandeiras meritórias e inadiáveis, de impacto revolucionário e pioneiro na evolução qualitativa do sector da educação em Portugal, de que são exemplo a profissionalização da gestão nos termos propostos, a avaliação externa permanente do sistema e dos seus agentes, que se quedou pela publicação inconsequente de rankings de escolas ou a anunciada reforma do ensino artístico, condenada a uma interminável discussão pública desde o passado dia 28 de Abril de 2003 e com implementação efectiva adiada para o ano lectivo de 2007/08 se, até lá, a vontade testamentária for respeitada.
Na conferência do Banco de Portugal da semana passada, sobre o “Desenvolvimento Português no Espaço Europeu”, o governador classificou o sector da educação como “um desastre” inibidor do crescimento sustentado. Nos indicadores enunciados por Constâncio pulverizaram-se, uma vez mais, alguns dogmas caros à esquerda: o investimento na educação (5° lugar na lista da OCDE) é um desperdício quando relacionado com os resultados obtidos (25° ou 26° lugares da escala da OCDE, “muito abaixo dos dez países que vão entrar na UE”), pelo que o seu aumento, sempre reclamado, é uma demagogia antipatriótica, mesmo que suportado pelo aumento e generalização do regime das propinas, que o governador também defende (que mais terá de dizer ou fazer para merecer a excomunhão?); para um impacto tão decepcionante, nem o primeiro lugar obtido por Portugal no “ratio” “professor por número de alunos” opera qualquer ganho.
Depois do esforço financeiro dispendido ao longo de décadas, no fim de um sem número de experiências pedagógicas em ritmo de fluxo e refluxo, após uma iniciada tentativa de reposição hierárquica das especiais relações de poder que regulam a vida das comunidades educativas e uma vez assumido o compromisso de crescente exigência no capítulo da avaliação e da consequente progressão escolar dos discentes, restam poucas explicações para o fracasso do sistema educativo português. A profissionalização da gestão, com a correlativa avaliação independente do desempenho, será uma delas, pelo reforço implícito da transparência que desperta, pela orientação por objectivos — em vez da actuação pelos interesses corporativo-sindicais — que provoca. A avaliação dos docentes, como garantia prévia de produtividade e eficácia, será outra condição determinante que urge enfrentar e aplicar. A negligência, a displicência, a irresponsabilidade dolosas, para além de merecerem censura no plano ético, devem incorrer em apreciação jurídico-penal, por analogia, referida a título de exemplo, com os regimes processuais previstos para o apuramento de responsabilidades pela qualidade da prestação de cuidados de saúde ou no caso de imputações por más práticas ambientais.
A Reforma do Ensino Artístico, um dos pilares da reforma global do Ensino Secundário, visando integrar as várias valências dispersas do lado da oferta e, sobretudo, retirar do ensino profissional, onde se alojavam como um quisto, as Artes, dada a sua especial vocação especializada a requerer prossecução de estudos superiores em vez da entrada prematura no mercado de trabalho, abraçava uma meritória intenção reformadora de que é exemplo a promoção do ensino musical precoce em escolas especializadas da rede pública. O seu adiamento sine die conduz a Reforma do Secundário a uma inconsequência doutrinária e, pior do que isso, condena a cultura a um futuro menor.
Diante de desafios tão mobilizadores e decisivos para o desenvolvimento e afirmação de Portugal, pontuar a agenda política com questiúnculas subsidiárias só pode indiciar desorientação estratégica, incapacidade concretizadora e resignação. (Vidé trackback: http://aviz.blogspot.com/2004_03_01_aviz_archive.html#107870669955043641)