TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

02 março 2004

Carta ao Director do Público

Carta ao Director do “Público”

Senhor Director,

Tal como muitos outros portugueses, alimento pelo “Público” laços de afectividade que vêm do tempo da sua fundação, embora não deixe de fazer uma leitura crítica do vosso esforço redactorial ou me permita o desacordo pontual em relação a uma ou outra “militância” que detecte e não me atraia. Ultimamente, sinto o seu jornal tão empenhado na defesa do Processo de Reforma Administrativa em Curso (PRAC), que chego a recear pelo aliviar de cautelas deontológicas ou de regras de ponderação, bom senso e equidade na atribuição de espaço de difusão das ideias dos que se opõem ao PRAC e das quais eu comungo. Bem sei que não será fácil encontrar uma personalidade de elevado perfil político, técnico ou técnico-constitucional disponível para assumir a oposição à avalancha unanimista — a oposição joga no fracasso da reforma, mas não conseguiu, nos últimos oito anos, gizar alternativa exequível, pelo que militam nas suas fileiras apoiantes conformados como o Prof. Vital Moreira e até o Senhor Presidente da República, apesar de garante da defesa da Constituição, é tido como apoiante, pelo que nem como “arma de arremesso político” pensará em suscitar a fiscalização do Tribunal Constitucional — conduzida, com mestria, pelo governo. Esta dificuldade não legitima, contudo, um esforço de “silenciamento” das poucas, mas cada vez mais qualificadas, vozes que, a custo, se vão fazendo ouvir. Não concorda, senhor Director?
Ao ler, ontem, o artigo de opinião, de título acintoso, do seu jornalista Luís Costa, de reacção à classificação do PRAC, incluída na vossa edição de Domingo e proferida pelo senhor Eng° Eurico de Melo, que o apodou de “um enorme disparate”, “ofensivo” e “sem pés nem cabeça”, vi nele, implícita, uma intenção de desacreditação ilegítima, desconforme com o princípio da igualdade a respeitar no tratamento da opinião política e que atenta contra o meu direito a ser informado.
Mas para além disto, a análise apressada, que denuncia aquela intenção, estabelece uma contradição que a destrói, que não à minha inquietação de leitor: não se compreende como podem definir-se como “reacções objectivamente exageradas” — e mesmo que o fossem, que teria isso de subversivo ou antipatriótico a ponto de justificar a indignação do autor? — e como críticas violentas as aludidas declarações de “(…) Eurico de Melo, o ancião ‘vice-rei’ do Norte e antigo braço-direito do anti-regionalista Cavaco Silva”, quando por mais de uma vez se anunciou que o regime pretende ir muito além da relativa inocuidade que Luís Costa não se coíbe de realçar, assumindo um estatuto de circunscrição eleitoral, ou quando se constata que ficará muito aquém do perfil democrático mínimo, quer quanto à transparência e abertura, à sociedade civil implicada, do debate relativo à sua adopção, quer quanto à legitimidade eleitoral directa dos seus órgãos. Pretensamente preocupado com a alegada e desproporção reactiva dos visados pela sua pena alinhada, em vez de aguardar a auto-descredibilização daquela, Luís Costa escolheu o campo, situando-se do lado de uma “legislação (…) tão pouco vinculativa e [que] confere tantas prerrogativas às autarquias que as integram, que a ameaça maior que sobre elas paira é mesmo a sua ineficácia”, quando, na expectativa deste resultado tão medíocre, um pouco de bom-senso aconselharia a rejeição. Ao invés, assumindo uma exagerada oposição a um julgamento adequado a uma reforma tão pouco virtuosa, como resulta da sua apreciação acerca do instituto, patenteou equívocos, que partilha com o PRAC e procurou “condicionar” uma voz que, apesar da clara oposição assumida, acabou por se abster numa votação livre e democrática.
Resta-me uma pergunta: que sabe Luís Costa acerca do PRAC que lhe permite afirmar que este fora arquitectado “pelo secretário de Estado Miguel Relvas, em colaboração directa e estreita com a Associação Nacional de Municípios Portugueses”? Que preparação específica lhe permite emitir uma interpretação autêntica deste quadro normativo que, taxativamente, assegura que visa “tão-somente (…) conferir um novo protagonismo e uma acrescida eficácia à gestão comum dos interesses intermunicipais”? Destes assuntos muito me importaria de ter ciência, já que aproveitaria sobremaneira à minha teoria do golpe de estado autárquico, segundo a qual o poder central é refém da oligarquia municipal.

Sem outro assunto, apresento-lhe, senhor Director, os meus melhores cumprimentos.

P.S. Para fundamentar, ainda mais, a minha convicção relativa ao tratamento tendencioso deste assunto, a edição de hoje do seu jornal cede uma página à propaganda aos benefícios do PRAC, na qual o Senhor Secretário de Estado tem nova oportunidade de ameaçar com alguns fantasmas e de distribuir mais algumas bananas — transferência de competências, fim dos distritos — prerrogativa de que vem dispondo de cada vez que aparecem sinais adversos para a sua reforma, cujo mapa concreto se distancia, inexoravelmente, daquele com que sonhou.