TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

15 fevereiro 2004

Compromisso cívico e responsabilidade social

Compromisso cívico e responsabilidade social

Ainda é cedo para avaliar a repercussão da iniciativa levada a cabo pelo movimento de reflexão dos empresários, auto denominado «compromisso Portugal». É, contudo, possível louvar o impulso participativo pelo que ele transporta de contribuição corajosa com vista a influenciar as escolhas determinantes para a maximização do bem comum, através da partilha de conhecimentos e experiências vividos por individualidades de competência e sucesso celebrados; pelo risco assumido de renunciar a tabus, preconceitos e ao ónus impeditivos da defesa desassombrada de ideias impopulares com um longo caminho a percorrer até à sua consolidação comunitária. Ruptura e compromisso, renúncia a um passado paralisante, defendido em nome de perenes e inamovíveis direitos adquiridos e personificação desinibida da mudança em nome do futuro aspirado, eis as razões para o meu aplauso.
Mutatis mutandis, posto a salvo de qualquer imodéstia ou livre de qualquer complexo megalómano, a minha conduta de sempre, publicada desde há quase um ano, tem sido orientada por este quadro metodológico: coragem para afrontar e julgar o consensual, lucidez para propor vias alternativas e resistência para perseverar na longa vereda até ao reconhecimento da nossa causa.
Vivemos uma época reformista, que gera tensões e oposição inevitáveis e, em certo sentido, desejáveis. Algumas medidas propostas têm sido recebidas com histérica gritaria, vinda dos privilegiados do costume, os mandatários ociosos e loquazes do fossilizado proletariado doutrinado, sectários hedonistas da preguiça de rendimento vitalício garantido, dos “terroristas” ensinadores de título sem alma e sem pátria, acastelados em corporação de interesses e direitos, “assassinos” de futuros perdidos.
Mas uma proposta tem passado à margem das várias resistências e bloqueios: a nova proposta da descentralização administrativa. Tem sido apregoada como prodigiosa panaceia contra as maleitas do secular centralismo e vem sendo ministrada de forma proficiente, com a dose adequada de anestésico, para que a dormência provocada afecte, de forma indiscriminada e até à consumação integral do “tratamento”, todo o tecido social, incluindo a oposição governativa e órgãos de soberania, designadamente o que zela pelo regular funcionamento das instituições democráticas. Aspectos concretos, como o défice democrático implícito na implementação da solução proposta, a falta de mandato popular exigível para a aprovação das composições supramunicipais ou a ausência de um quadro evolutivo bem definido, quando está em causa uma perigosa indefinição potenciadora de todas as derivas futuras, apresentada como uma desejável abertura e abrangência do regime.
Em tempo de «compromisso Portugal», exemplo da emanação da vontade de “sectores esclarecidos” e interessados da sociedade civil, empenhados em influenciar a orientação estratégica dos decisores políticos, também em Trás-os-Montes sentimos necessidade de conferir a argúcia das lideranças intelectuais e sua capacidade de perscrutar as implicações futuras das apostas que se esboçam hoje. De entre todos os esclarecidos — e não serão muitos — ninguém deterá melhor conhecimento de causa e responsabilidades que as elites universitárias.
Depois de todo o caminho já percorrido pela reforma regionalista, que a concretizar-se nos termos propostos e nos presumidos será um instrumento precioso na consumação do golpe de estado municipalista e no momento em que, com o aproximar da fase decisiva da sua institucionalização definitiva, se renovam as ameaças separatistas — ao contrário do prometido —, geradoras de maior complexidade estrutural para a arquitectura administrativa e maior ingovernabilidade, irracionalidade, conflitualidade e desarticulação ao nível do subsector autárquico da construção estadual, em véspera de vir a beneficiar de novas competências prometidas, de ordem eleitoral, administrativa e fiscal, o sábio corpo universitário não poderá deixar de honrar as suas especiais responsabilidades sociais, tanto mais graves quanto menor é o grau de consciencialização política, agravada pelo défice cultural da nossa comunidade, tomando uma posição pública, muito para além da intervenção instrumental encomendada, acerca do tema, suas implicações na vida concreta em consequência das escolhas feitas e a fazer, bem como das alternativas, igualmente válidas, que não são dadas a conhecer nem a sufragar.
Estarão, os prestigiados centros de saber que conhecemos e aqueles que desejam afirmar-se e reclamam a sua consagração institucional definitiva, à altura deste desafio, tornando-se mandatários do seu povo, indefeso perante a tirania dos que, como sempre na história, sobre eles decidem um futuro incerto, não reclamado nem mobilizador?