TRANSMONTAR

Dissertações sobre Trás-os-Montes, seu passado, presente e futuro. Idiossincrasia transmontana e visão do mundo a partir deste torrão.

25 setembro 2003

O Lobo e o Capuchinho

O Lobo e o Capuchinho

Em Portugal, o poder desmistificou-se, democratizou-se, fulanizou-se e caiu de amores nos braços das autarquias.
O sistema político português, formalmente classificado como misto, de leve pendor parlamentarista, vem, de facto, sofrendo uma gradual, mas consistente, inversão da pirâmide de comando e são os presidentes de Câmara, arregimentados na Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) à laia de de sociedade secreta visando fins subversivos e que agita para todos os quadrantes o formidável peso institucional assente no rígido, eficaz e perene controlo eleitoral, que chantageam e delapidam a riqueza nacional, sequestrando os governos e submetendo-os aos seus interesses particulares e colectivos, numa extorsão despudorada e voraz com contornos de tributo ou resgate a liquidar a troco da liberdade negociada e permanentemente vigiada e condicionada.
Numa metáfora forte - violenta, até, mas não estamos cá para contemporizar - que ilustra bem esta sórdida relação de servidão que, actualmente, caracteriza a posição relativa do Estado e do seu subsector da Administração Local, este impõe, sem comiseração, a alguns agentes daquele que se prostituam, intelectualmente, numa actuação desvairada e irreflectida ao serviço dos fins últimos de tais proxenetas; a outros que se corrompam na execução da tarefa para que foram "eleitos" mandatários.
A institucionalização e legitimação desta fraudulenta prática política está a ser executada no quadro novo do reforço do poder autárquico, pela via das novas instâncias administrativas supramunicipais, a que o governo chamou, eufemisticamente, "revolução tranquila".
Apesar deste quadro interpretativo me transmitir muita segurança analítica, ainda não consegui entender o expresso beneplácito presidencial a tal reforma, mesmo tomando em linha de conta a sua oposição a certos delírios foraleiros recentes e, mormente, considerando o melindre constitucional da questão ainda não suscitado e sem que se invoque razão para tal protelação. Estará Sua Excelência, igualmente, "condicionado" pelo rolo compressor da dinâmica histórica da tirania municipalista (e a regionalista insular também tem que se lhe diga! Cá estamos para ver...) ou "milita", tacitamente, na estratégia surda da oposição. Custos de oportunidade...
A última prova do colapso da arquitectura do estado, da tomada de assalto da cadeia de poder e do estado de sequestro por que passam os agentes de cúpula da administração central está patente no episódio da conferência de imprensa, convocada para o passado dia 23 de Setembro pelo presidente da ANMP. Este desassombrado líder do (des)governo do povo não se coibiu de lançar avisos sérios ao executivo central, sob a forma de censura expressa à tomada de posição recente do senhor secretário de Estado do Orçamento, Norberto Rosa, que criticara o aumento da contratação de pessoal, para prover os quadros autárquicos, como indicador fiável de uma escalada despesista com prováveis efeitos no déficit. No rol de imprecisões falaciosas ("os municípios só podem recorrer a crédito pela via do Euro 2004, portanto estão a cumprir um desígnio nacional"; então serão, apenas, oito em trezentos que estarão a cumprir tal; e os restantes?), negações (o endividamento não está a crescer descontroladamente porque "os municípios só podem endividar o valor que amortizarem") e acusações (já "começa a ser de mau gosto a atitude de alguns membros do governo"), nem o Banco de Portugal escapa ao desmentido do anúncio da duplicação do endividamento das autarquias que emitira.
Prova e eloquente, também, foi fornecida, há dias, pelo ministro Theias quando, arriscando a credibilidade e a coesão governo, proferiu declarações públicas de apoio à posição dos autarcas na batalha pelo descongelamento do recurso ao financiamento remunerado, escassas vinte e quatro horas após a divulgação dos receios de Norberto Rosa com a execução orçamental autárquica, colando, ao executivo de que faz parte, uma imagem de descoordenação, de insurreição, atendendo à diferença qualitativa de autoridade que deve favorecer o Ministério das Finanças e de capitulação perante pressões e chantagens.
Para que nenhum ingrediente falte no cocktail desta guerra suja, também se pode encontrar a figura do agente infiltrado, papel reservado, por certo, a um governante que passa por ser o mentor espiritual da Reforma Em Curso (REC) e de quem se diz que se prepara para dar um passo atrás, em próxima remodelação, que mais não será, a confirmar-se o movimento projectado, que criar condições (vulgo, dominar o "aparelho") para o avanço determinado até à consumação do que já vislumbro e antecipo profeticamente.
Curiosa e significativa é a posição dos autarcas socialistas. Ele é a polémica das nomeações para a CCDRN, logo abafada; e a participação no movimento unanimista de criação de concelhos; e a heróica resistência, despida de hostilidade, ao célebre "endividamento-zero"; e, por fim, a provocação sem contestação, lançada pelos presidentes de Câmara de Lisboa e Porto, de promoção da ideia da liberdade presidencial de constituição da vereação. Confiantes na capacidade de combate demolidora dos seus compadres e rivais, dão de barato os ganhos eventuais do presente, em troca do lucro certo que lhes reserva o futuro. Quer se consolide , quer se revele um desastre esta revolução desastrada implicará contas de deve e haver e os socialistas estarão do lado do activo. Para tanto lhes bastará nada fazer.